São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994 |
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Relatório à Academia Americana de Ciências, 2067 Os efeitos da Aids se amenizaram nos fumantes NELSON ASCHER
Hoje ninguém nega que os pioneiros da família foram mesmo desenvolvidos em laboratório, embora não com a intenção nefasta que lhes foi atribuída. Tratava-se apenas de um produto dietético revolucionário que escapou ao controle de seus criadores, gerando, em sucessão, o HIV 3, o HIV 69, capaz de atravessar o látex, e o HIV 666, transmitido pelo ar. A solução do problema surgiu inesperadamente, nos anos negros do Grande Terror. Quando, no final do século 20, os PC (Politicamente Corretos) tomaram, através de um golpe sangrento, o poder em nosso país, a Aids já atingira toda a população. O obscurantismo reinante desencorajava a busca científica de uma cura. Entre as vítimas do primeiro expurgo –durante o qual as feministas fuzilaram seus aliados, mesmo os insuspeitos de heterossexualismo– estavam muitos dos melhores cérebros. Em seguida, a Revolução Cultural –que tornara o molestamento punível com a pena capital– dizimou mais gente que a própria peste, pois, segundo a jurisprudência vigente, bastava a acusação para provar a culpa. Com o triunfo da ala moderada, reconheceu-se a necessidade da prevenção cirúrgica e os sobreviventes foram entregues ao Comitê de Prevenção ao Molestamento da comissária Lorena Bobbit. A ciência, considerada machista, continuou banida. Só duas disciplinas eram toleradas: a psicanálise lacaniana de mulheres que sobreviveram ao estupro verbal e a desconstrução pós-estruturalista dos romances de negras homossexuais. Um pequeno grupo de cientistas homens conseguiu refugiar-se nos desertos gelados do Alasca. Depois de anos de solidão ártica, superando seu medo natural às mulheres, os membros dessa comunidade isolada começaram, paradoxalmente, a sentir sua falta. Sequestraram algumas centenas delas e as mantiveram em cativeiro. Ainda assim, mesmo nesses dias apocalípticos, quando, com a disseminação do vírus, o fim da espécie parecia iminente, o desinteresse sexual das sequestradas contaminou a comunidade com um tédio absoluto. Seus pesquisadores constataram que a indiferença em questão decorria da falta de prazer, descobrindo também que, no século anterior, as mulheres só o obtinham, depois do coito, fumando um cigarro. O frêmito antecipatório desse prazer era o que se convencionara chamar de orgasmo feminino. Como o cigarro havia sido banido do continente, ele começou a ser contrabandeado da América do Sul. Ocorreu, então, algo imprevisível: os efeitos da Aids se amenizaram entre os fumantes. Investigações posteriores demonstraram que quatro maços diários imunizavam contra o vírus. Assim, nossos avós sobreviveram enquanto a peste destruiu a tirania das PC. Tudo que narrei e a própria AIDS são hoje, finalmente, história. Em homenagem póstuma aos bilhões de vítimas da correção política, do HIV e do antitabagismo, acendamos nossos cigarros, os primeiros que fumaremos não por razões de saúde, mas apenas por prazer. Texto Anterior: Pecado virtual Próximo Texto: A filosofia sem salvação Índice |
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