São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Rorty e a psicanálise

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Richard Rorty é um dos mais notáveis pensadores da atualidade. A leitura neopragmática que faz da filosofia da linguagem, da filosofia da mente, da teoria do conhecimento, da filosofia moral etc, é ousada, nova e admiravelmente inventiva. Por isso, abre um horizonte intelectual que vai muito além das disciplinas investigadas.
Exemplo típico é o caso da psicanálise. Rory nunca tomou explicitamente a psicanálise como objeto de estudo. Entretanto, alguns de seus trabalhos (por exemplo, "Contingence, Irony and Solidarity", "Freud and Moral Reflexion", "Non-reductive Physicalism" etc.) renovam, de modo inédito e surpreendente, noções psicanalíticas como a do sujeito na relação com a linguagem e a verdade.
Para Rorty, o que denominamos sujeito não é um dado pré-existente aos elementos linguísticos constitutivos de sua descrição. O "sujeito", o "eu" ou o "self" são um efeito de linguagem. Mas linguagem, aqui, não equivale à competência abstrata para produzir falas particulares, como em Chomsky, ou à estrutura formal de todas as falas possíveis, como em Saussure.
Na tradição pragmática de Wittgenstein, Austin, Quine e Davidson, linguagem é simplesmente o conjunto de atos de fala empregados pelos usuários competentes de uma língua. O que distingue o sujeito enquanto rede linguística de outros efeitos de linguagem, sem referência a estados ou processos subjetivos, é o fato de ser pensado como "a parte da rede de crenças e desejos postulada como causa interior do comportamento linguístico de um organismo singular". Em outros termos, o eu é a fração da linguagem entendida como aquilo que é causa ou que está na origem da linguagem.
As consequências desta afirmação são inúmeras. Em primeiro lugar, o sujeito é despojado de todo suporte "essencial", idealista ou realista. Nem corpo, nem conceito; nem sensível, nem inteligível; nem superficial, nem profundo, o sujeito é uma "realidade linguística" –realidade psíquica, disse Freud. E por ser linguística, depende de contextos historicamente contingentes.
Assim sendo, nenhuma identidade subjetiva –emocional, intelectual, sexual, etc– é "natural" ou "universal". Nossas crenças sobre o que é normal ou anormal, natural e antinatural nas condutas humanas não designam uma "realidade extra-linguística" anterior ou heterogênea à linguagem; exibem opções e preferências morais da cultura a que pertencemos. Em segundo lugar, o sujeito descrito desta forma não possue centro ou núcleo verdadeiro, nem estrutural nem histórico.
Flexionando pragmaticamente a teoria semântica da verdade de Quine e Davidson, Rorty afirma que "verdadeiro é aquilo que é aprovado num sistema de crenças válido para a maioria dos fatos na maioria dos casos". Dito de outra maneira, verdadeira é a descrição do sujeito que satisfaça as exigências morais do certo e do errado, do bom e do mau, numa dada forma de vida.
No neopragmatismo, portanto, o fundamental, em Freud, não é a descoberta de explicações causais deterministas e supostamente científicas do que sentimos, pensamos e fazemos: é a construção da imagem do sujeito como um retecer permanente de crenças e desejos que cessa, provisoriamente, quando um dado estado de satisfação moral é obtido.
Na clínica como na vida podemos desejar alterar estados subjetivos por diversos motivos. Porém, quando alcançamos a alteração desejada, e ela é satisfatória, "nada mais é preciso, nada mais é possível", como disse Davidson.
O critério da satisfação moral é, deste modo, decisivo no julgamento que fazemos sobre a "normalidade" ou "anormalidade" das organizações psíquicas, bem como sobre o sucesso ou insucesso do processo psicanalítico. Qualquer outro critério pretensamente fundado em argumentos racionais independentes de práticas culturais específicas pressupõe, sem tornar claro, o acordo em torno de crenças éticas compartilhadas na linguagem ordinária. É o adeus prosaico, wittgensteiniano, dado por Rorty à metafísica da falta, do desejo ou do verdadeiro sujeito, contida em tantas versões da psicanálise.
A meu ver, sua interpretação neopragmática do sujeito restitui a força original do pensamento freudiano. Ou seja, primeiro a escuta solidária das existências individuais em conflito com os vocabulários morais dominantes; depois as metapsicologias.
Estas serão sempre benvindas, desde que não pretendam aposentar precocemente vidas e desejos em "pequenas nosologias" e "pequenas teorias". Fazendo filosofia, Rorty fez o que de melhor pode ser feito em psicanálise: entender Freud. É um autor de gênio, comprometido com o humanamente digno. Pode haver maior elogio?

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