São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 1994
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Galeria monta instalação inédita de Oiticica

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Há 21 anos, num apartamento do lower east side de Nova York, entre 2h e 3h da manhã, Hélio Oiticica e Neville d'Almeida deixavam as instruções de uma instalação (ou "performance") com música de Jimi Hendrix.
A obra será montada pela primeira vez hoje, 13 anos após a morte de Oiticica (1937-80), a partir das 12h, na galeria São Paulo.
"Essas instruções foram feitas para 20 anos depois. Na época ninguém tinha coragem de montar. O máximo da arte americana dos anos 70 era Andy Warhol pintando lata de sopa Campbell e faturando uma nota. O Hélio representa uma dessacralização da arte mercantilista", diz Neville d'Almeida, 52, diretor de "A Dama do Lotação".
"CC5 - Hendrix War", que poderá ser vista (ou vivida, como queria o artista) a partir de hoje, é uma das nove propostas deixadas por Hélio Oiticica dentro da série de "bloco-experiências" ou "programas in progress" que foi denominada de "Cosmococa".
A instalação coloca em prática a idéia de "quase-cinema", desenvolvida por Oiticica e Neville: imagens fixas em movimento, com trilha sonora e a constituição de um ambiente.
"CC5" consiste em uma sala com quatro telas –onde são projetados os slides feitos pelo próprio Oiticia– e cujo centro é ocupado por um conjunto de redes, como em uma oca, onde se deita o espectador ao som de Hendrix.
"É para ser visto na rede, o que rompe com a idéia do espectador passivo diante da tela. Cria um clima. A rede dá vontade de você brincar. Tem uma capacidade sensorial maior. É uma viagem de 12 minutos", diz Neville.
As imagens projetadas nas telas mostram a capa do disco "War Heroes", de Hendrix, com as feições do músico desenhadas (ou maquiadas) com linhas de cocaína.
"Muita gente deve usar pó para cheirar, a gente usa para desenhar", diz Neville, rindo. "É jogo-joy: nasceu da blague de cafungar pó na capa do disco de Zappa `Weasels Ripped my Flesh': quem quer a sobrancelha? – e a boca? sfuuum!: pó-snow: paródia das artes plásticas", escreve Oiticica no texto do catálogo.
"Na época, ainda não havia Pablo Escobar, mas a gente já percebia esse elemento desestruturador da cultura latino-americana na cultura americana. Não é apologia; é uma bofetada na cara dos hipócritas e fariseus da arte e da crítica, porque rompe com a estrutura formal, bem-comportada e burguesa que envolve o setor das artes plásticas. É importante romper com os grilhões de uma artezinha fácil, apelativa", diz Neville.
Uma das principais questões da arte de Hélio Oiticica, que será homenageado com uma sala especial na Bienal de São Paulo deste ano –ao lado de Lygia Clark e Mira Schendel–, é justamente a confusão entre vida e obra, colocando a arte fora da definição corrente de arte, onde ela é menos esperada, fora da legitimização oficial, para que possa voltar a ser arte de verdade. Daí as comparações entre o artista e o poeta, ator e dramaturgo francês Antonin Artaud.
Desde seus "penetráveis" (ambientes concebidos para que o espectador vivesse uma experiência ao penetrá-los), nos anos 60, até os "parangolés" (arte para ser vestida e não mais simplesmente observada), tudo em Hélio Oiticica girava dentro da perspectiva de transformar a vida em arte, cada milímetro de vida, o que explica a metamorfose da experiência cotidiana do artista em obra, através das instruções e anotações obsessivas que deixou.
"Ele tinha criado uns ninhos para uma exposição e acabou ocupando a extensão do apartamento inteiro com esses ninhos. Um deles era a cama, uma cabine de comando, com TV, rádio, telefone, tocafitas, tocadiscos, máquina de escrever, tudo ligado ao mesmo tempo. Foi onde a gente inventou as `Cosmococas"', diz Neville.
Dois dos nove "programas in progress" da série das "Cosmococas" foram montados para a retrospectiva de Hélio Oiticica no Jeu de Paume, em Paris, e no Witte de Witte Museum, em Roterdã.
"Vinte anos depois de termos inventado aquilo, eu recebo um telefonema da curadora do Jeu de Paume, Catherine David, dizendo que tinha vindo ao Brasil e ficado deslumbrada com a idéia das `Cosmococas'. Queria a autorização para montar. Até então nada tinha acontecido. Era um negócio que eu não via há 20 anos. Já tem tanto tempo, que eu acho que nem tinha nascido", diz Neville.
A "CC3", inspirada em Marilyn Monroe, consistia em uma sala coberta de 60 cm de areia, forrada de plástico e cheia de balões.
A "CC1", inspirada na imagem de Bu¤uel, consistia em uma sala repleta de colchões e travesseiros. "Tinha uma lixa de unhas também. É impressionante. Você se deita e começa a lixar a unha. É como se você nunca tivesse lixado a unha. Dá uma alegria. Não tem maldade. É lindo", diz Neville.

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