São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 1994
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Chilenos transformam história em jogo

MARIO VITOR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

"Taca Taca... Mon Amour", do Teatro del Silêncio, do Chile, é um espetáculo de mímica que enfoca personagens e processos históricos da primeira metade deste século. O tom da peça, em que os fatos se sucedem sem preocupação com a ordem cronológica, evolui para um crescente pessimismo político e desconfiança em relação ao progresso científico.
Montada dentro do ginásio do Pacaembu, a história se desenrola sobre um tapete verde que ocupa grande extensão da quadra de esportes.
Saindo de entradas laterais, às vezes descendo por estruturas metálicas montadas nos dois lados, contracenam atores que representam figuras históricas: a rainha Vitória (caracterizada como uma bruxa), os czares e Rasputin, Lênin e Stálin, Einstein, Freud e três histéricas, o Tio Sam e uma nativa andina, Hitler e Eva Braun, a mulher judia vítima do nazismo e uma menina japonesa contaminada pela radiação da bomba atômica de Hiroshima.
Os elementos principais dessa pantomima são jogadores de pebolim ("taca taca", em espanhol): um grupo de atores que evoluem em conjunto, como um coro mudo envolvido numa espécie de diálogo atlético e plástico com as personagens históricas.
Vestidos como bonecos, seus gestos marciais têm a limitação típica de jogadores feitos de massa, soldados a (de) estruturas invisíveis e mais poderosas. Eles carregam ou são carregados por hastes metálicas que atravessam linhas de jogadores num conjunto que alcança notável efeito visual e dramático.
O líder do grupo, o único a dispor de certa autonomia de ações, é o goleiro. Enquanto a rainha Vitória ou os czares, Einstein ou Freud comprazem-se a brincar com uma esfera metálica que é ao mesmo tempo globo terrestre, mente humana e átomo, o goleiro entra e sai de cena, repetindo uma rotina visual que encerra o ciclo histórico abordado.
Seus gestos transmitem ao mesmo tempo surpresa, advertência e ingenuidade. É no goleiro que se percebe com mais clareza o grande esforço do diretor e criador Eduardo Celedón de extrair o máximo efeito dramático pela distorção e contenção do movimento gestual, o que produz momentos de grande expressão subjetiva.
Em momento algum "Taca Taca... Mon Amour", peça sobre guerra e genocídio, chega a ser leve ou agradável. Sua abordagem do processo histórico é crua e desesperançada. Sua visão do conhecimento científico é, no mínimo, de desconfiança, o que aliás é coerente com o sentimento vigente no início do século.
Representantes da ciência, como Freud e Einstein, são mostrados como basbaques aprendizes de feiticeiros incapazes de dimensionar, e controlar, as consequências de suas descobertas, engendradas no mesmo período em que, com a ajuda decisiva da ciência, o homem desenvolve meios inéditos e avassaladores de destruição.
Agora não são mais os sinais positivos de evolução na compreensão da mente ou de entendimento dos fenômenos naturais os que simbolizam a atividade científica. Ao contrário, ciência é sinônimo de devastacão para a humanidade, instrumento do holocausto nazista e do apocalipse nuclear em Hiroshima, que encerra a ação.
Tudo seria perfeito sem a superficialidade publicitária e a correria com que são abordadas algumas entidades históricas. Lá está um Tio Sam de fraque forrado de estrelas, olhos de sangue, a matar a cria da mulher nativa dos Andes.
Lá está o Lênin épico, herói dos camponeses mortos de frio, a transmitir, intimorato, o poder a um Stálin de aparência neutra, que é tudo o que ele não foi.
A peça parece ter escolhido um pólo ideológico. Nada a opor, desde que não soe como expediente fácil de conexão com o público, o que não faz jus à habilidade exibida pelo Teatro del Silencio na expressão dramática e nem à relevância de suas preocupações humanistas. Algo mudou desde o início do século até os dias de hoje.

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