São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Fernando Henrique tenta decifrar as ruas

FERNANDO RODRIGUES

Senador quando jovem queria ser cardeal; com Collor tentou aprender o caminho para o contato popular

O professor de sociologia Fernando Henrique Cardoso, 62, ganhou sua única eleição em 86. Conquistou uma cadeira no Senado Federal. Fazia campanha falando para grupos de 40 ou 50 pessoas. Percorreu 208 cidades do Estado de São Paulo. Discursava dentro de salas fechadas, por quase uma hora. Era mais aula que campanha.
Na eleição presidencial, será inviável repetir a estratégia. O país tem 4.491 municípios e 90,2 milhões de eleitores. Sociólogo de sucesso, Fernando Henrique vai ter de enfrentar as ruas. Falar para milhares de pessoas ao mesmo tempo. E adequar seu discurso ao palanque. Terá de se contentar com reflexões-relâmpago, de dois ou três minutos.
Só que o ex-ministro da Fazenda é um intelectual. Relutou em fazer campanha de rua. Queria adiá-la para depois da Copa do Mundo. Seu partido, o PSDB, resmungou. Fernando Henrique recuou. Ele é assim mesmo. Pondera sobre tudo e cultiva a racionalidade. Defende seu ponto de vista e começa a frase seguinte com um "mas...".
*
É mais fácil entender Fernando Henrique Cardoso com uma de suas frases: "(Torço para o) Corinthians, claro. Mas já fui sócio do Palmeiras. Fora de São Paulo, torço para o Santos. E se a Portuguesa ganhar, não fico triste."
A declaração é de agosto de 85. A campanha era para a Prefeitura de São Paulo. Fernando Henrique perdeu para Jânio Quadros.
Essa sua indecisão por alguns temas reforça a imagem de hesitante de seu partido, o PSDB. Seu amigo, o senador Jarbas Passarinho (PPR-PA) costuma definir FHC hoje com uma piada: "Fico feliz em saber que é um sociólogo. Se engenheiro fosse, construiria muros intermináveis."
FHC, como ficou conhecido por uma necessidade dos jornalistas de fazer o seu nome caber em títulos, lutou nas últimas duas décadas para fazer do Fernando Henrique político um vencedor igual ao Fernando Henrique professor.
O mestre é um sucesso. Sociólogo, publicou 24 livros em 34 anos. Deu aulas em oito faculdades ou universidades no exterior. É professor emérito da Universidade de São Paulo (USP).
Em resumo, é possível discordar das idéias do professor Fernando Henrique. Isso não o afeta.
Na política é diferente. Até agora, FHC foi testado três vezes nas urnas em 78, 85 e 86. Perdeu as duas primeiras e ganhou a última.
Em 78, disputou uma vaga no Senado e ficou apenas com a suplência. Perdeu para André Franco Montoro. Mesmo tendo toda a esquerda de São Paulo em apoio –inclusive o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva. Teve, ainda, o aplauso entusiasmado de Orestes Quércia.
Seu segundo teste eleitoral foi em 85. Disputou e perdeu a Prefeitura de São Paulo. Foi derrotado por Jânio Quadros.
A campanha de 85 foi uma sucessão de erros. Declarações suas permitiram que adversários o rotulassem de maconheiro e ateu –embora nunca tenha afirmado diretamente não acreditar em deus nem ter consumido drogas.
Para os amigos, foi ingênuo. Sofreria de "sincerocídio", um neologismo criado pelo publicitário Nizan Guanaes.
Para os detratores, FHC é presunçoso e elitista. Os inimigos adoram recordar 85, quando o candidato à prefeitura sentou-se na cadeira de prefeito antes da eleição. Perdeu para Jânio Quadros por apenas 141.154 votos. Mas perdeu.
Seu último teste eleitoral aconteceu em 1986. Ganhou sua única eleição, para o Senado.
Elegeu-se pelo PMDB na esteira do Plano Cruzado, que reduziu artificialmente a inflação brasileira para -0,11% no seu primeiro mês. Ainda assim, ficou em segundo lugar, 1,5 milhão de votos atrás de Mários Covas, outro peemedebista.
Esses três testes mostraram para FHC a diferença entre a política e a academia. Ele sabe que para ser presidente não basta fazer um exame de cátedra. "Estou com o couro duro", costuma dizer.
Uma das provas que vai enfrentar nesta campanha é o que vem sendo chamado de "guerra de dossiês". São relatórios sobre a vida pessoal dos candidatos que estariam prontos para ser divulgados.
De FHC, o boato recorrente em Brasília seria o seu suposto romance com uma jornalista de TV. O namoro teria durado quase oito anos. Um filho teria nascido da união dos dois. O garoto teria hoje três anos.
Fernando Henrique nega tudo. "Olha, se tiver alguma mãe dizendo que o filho é meu, vamos examinar. Isso é onda. A imprensa começou a falar dessa coisa antes dos candidatos. O Quércia teria um dossiê, dizem. Mas o Quércia não disse nada.
No plano político, FHC certamente será questionado na campanha sobre sua proximidade com o ex-presidente Fernando Collor. Em várias ocasiões esteve pronto para assumir algum ministério.
Nos jantares onde o convite era sempre reapresentado a FHC, a forma de tratamento entre os dois Fernandos costumava ser pelo primeiro nome. Exerciam um fascínio mútuo um pelo outro.
FHC queria aprender com Collor o caminho do contato popular. E o presidente ficava fascinado com o professor Fernando Henrique, seu conselheiro informal.
Esse relacionamento de proximidade a Collor sem aderir totalmente ao governo custou a FHC a imagem de indeciso. Uma pecha já carregada pelo PSDB. Mas o fato é que nunca hove a adesão.
O ministério que FHC assumiu foi só no governo Itamar. Primeiro, o das Relações Exteriores. Depois, o da Fazenda. Quando aceitou ser o czar da economia, o fez em situação delicada.
Foi o quarto ministro da Fazenda de Itamar em pouco mais de um ano. Costurou um acordo amplo e conseguiu o apoio de empresários, da mídia e de parte do Congresso.
A inflação disparou. Mas FHC foi poupado. Lançou-se candidato certo de que poderia ser o anti-Lula. Seus índices baixos nas pesquisas eleitorais ameaçam fazer ruir o acordo que levou para a disputa. Fernando Henrique é de 18 de junho de 1931. Nasceu em casa, na rua 19 de fevereiro, em Botafogo, no Rio. É do signo de gêmeos. Filho de pai militar, veio aos oito anos para São Paulo.
"O Fernando estava com um sapato branco, um roupa esporte bem característica de carioca", lembra-se o engenheiro Osmar Penteado de Souza e Silva, 63, colega de FHC no ginásio, sobre o dia em que conheceu o amigo.
Prestes (1898-1990) foi o mais popular líder comunista do Brasil. "Papai e Prestes eram iguaizinhos a todos os militares: amavam o Brasil e o seu povo", diz FHC.
Junto com os colegas, fundou o Centro Colegial São Paulo –o grêmio da escola. Seu grupo ganhou as eleições durante os três anos do curso, de 46 a 48, FHC foi da diretoria os três anos.
No colegial –o segundo grau da épóca–, os garotos tinham aulas de manhã. As garotas, à tarde. "O Fernando era popular com as moças. Ele ia sempre nas classes das meninas para distribuir os panfletos da chapa", lembra o amigo Célio Benevides.
Formado no colegial, em 49 ingressou na universidade. Fez sociologia, na USP. "Estava na moda naquela época", diz seu ex-professor, o deputado federal Florestan Fernandes (PT-SP), 73.
Na USP, conheceu sua mulher, a também estudante de sociologia Ruth Corrêa Leite, um ano mais velha do que ele. Na época, FHC tinha 18 anos. Ruth, 19.
"Eles faziam a mesma coisa na universidade, tinham os mesmos gostos. A gente falava que mais pareciam irmãos do que namorados", diz Roberto Gusmão, 68, um colega da época que chegou a ministro da Indústria e do Comércio do governo Sarney (85-90).
Em 47, Gusmão presidiu a União Nacional dos Estudantes (UNE). Ficou no movimento estudantil até o início dos anos 50, quando conheceu Fernando Henrique. "Ele era comuna. Eu era mais um socialista", diz.
Em 31 de dezembro de 53, às 23h45, Gusmão e Fernando Henrique estavam na calçada esperando a São Silvestre passar. A Corrida já era a mais importante prova pedestre de rua do Brasil.
"Fomos ver porque iria ganhar o Emil Zatopek, um tcheco, comunista. Era o máximo ver um comunista ganhar a corrida", afirma Gusmão.
O sentimento de Gusmão e de FHC naquele dia habitou as esquerdas do país durante anos: na falta de brasileiro com chance de ganhar, torcia-se preferencialmente por alguém de um país de regime comunista.
Depois da prova, na comemoração da entrada de 1954, Fernando Henrique fez a declaração que Gusmão se lembra até hoje: "Eu vou ser catedrático, vou para a Sorbonne, vou ser senador da República, e, se possível, cardeal."
Os cardeais formam o conselho consultivo da Igreja Católica. Não é preciso ser padre para ser cardeal. São nomeados diretamente pelo papa. O cargo é vitalício. A função mais importante de um cardeal é eleger o papa.
"É o carreirista mais bem-sucedido que eu conheço costumo brincar. Só mudou a idéia de cardeal para presidente", diz Gusmão.
Logo depois da tomada do poder pelos militares, em 31 de março de 64, FHC resolveu sair do país por causa de uma ordem de prisão preventiva.
Era acusado de atividades subversivas. Ficou escondido no apartamento da psicanalista Melanie Farkas, no Guarujá, cidade litorânea a 87 km de São Paulo.
Passou duas semanas sem aparecer. Ficou no litoral junto como amigo Leôncio Martins Rodrigues, outro sociólogo.
Maurício Segall, filho do pintor Lasar Segall, e ligado ao Partido Comunista, preparou a fuga. FHC voltou incógnito para São Paulo. Passou na casa do amigo Roberto Gusmão. No porão, atrás de um aparelho de som, escondeu a papelada do que viria a ser sua tese de cátedra quatro anos depois.
Embarcou para a Argentina, com seu próprio passaporte, no dia 17 de abril. A polícia de fronteira não percebeu. De Buenos Aires, foi para o Chile. Chegou em Santiago no dia 1.º de maio. À sua espera no aeroporto, um amigo: Francisco Weffort, hoje no PT.
FHC foi para o Chile trabalhar no Ilpes (Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social). O Ilpes é da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), um organismo da ONU (Organização das Nações Unidas).
Os cepalinos, como eram conhecidos os economistas da Cepal eram adeptos da tese "só há páíses ricos porque existem os pobres". É a teoria da dependência: a periferia nunca vai se desenvolver.
Fernando Henrique achava a teoria, como estava, um despautério. Criticou os cepalinos. Naquela época o tucano já dizia acreditar na economia de mercado ou nos benefícios da sociedade de consumo.
Foi ainda no primeiro semestre de 64 que fez arrepiar a esquerda ortodoxa. "O investimento dos trustes e cartéis gera crescimento interno. Por isso, a sociedade se transforma", repetia.
Nos 70, FHC foi mais direto. Enquanto as esquerdas só discutiam as formas de resistências ao regime militar, o sociólogo Fernando Henrique queria aumentar o nível de consumo.
Em artigo para o extinto jornal semanal "Opinião", em fevereiro de 73, escreveu: "As oposiões, em vez de negar a realidade e encastelarem-se na crença de um imobilismo social que não existe, ou de menosprezarem a ânsia por consumo das classes possuidoras, devem partir destas aspirações procurando aumentá-las, corrigi-las e mostrar a inviabilidade ou a dificuldade de elas serem atendidas nos moldes atuais da sociedade.
Embora tenha criticado ferozmente o que chama de "Estado técnico-burocrático" no início dos anos 70, hoje ainda é contra a venda da Petrobrás, maior empresa do país. "Sou a favor, sim, de abrir o monopólio", diz.
Indagado sobre a razão específica para defender a Petrobrás nas mãos do Estado, tergiversa: "É uma questão que não está colocada." A Petrobrás ficará para sempre nas mãos do governo? De novo, a mesma resposta.
Os titubeios na hora de abraçar de uma vez o liberalismo lhe rendem críticas. O deputado Roberto Campos (PPR-RJ) descreve-o de maneira singular: "O Fernando Henrique é um Lula que estudou."

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