São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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O intelectual de sucesso se adapta ao político

FERNANDO DE BARROS E SILVA; FERNANDO RODRIGUES

A partir dos anos 70, Fernando Henrique deixa posições de esquerda e passa a interferir no debate político
FERNANDO DE BARROS E SILVA Da Reportagem Local
Desde muito cedo, Fernando Henrique Cardoso viveu como um perfeito dublê de intelectual e político. Nada mais falso do que ter dele a imagem do sociólogo bem-sucedido que só tardiamente trocou as aulas pelo palanque.
Comentando a dupla vocação do candidato tucano, seu ex-professor mais célebre, o crítico literário Antonio Candido, 75, diz que "era um aluno brilhante e, ao mesmo tempo, uma das pessoas mais preparadas para a política universitária que conheci".
Às voltas com Marx
Na década de 60, Fernando Henrique viveu seu auge como intelectual. Seu primeiro livro a se tornar referência para as ciências sociais no Brasil foi "Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional", publicado em 1962.
Sobre o livro, FHC faz hoje o seguinte comentário: "É um livro que pára em pé, uma obra muito importante que ninguém nunca leu. Foi uma tentativa de utilizar a dialética numa análise concreta."
Para se entender do que se trata, é preciso recuar a 1958. Foi naquele ano que jovens intelectuais da USP resolveram formar um grupo interdisciplinar para ler "O Capital", do economista e filósofo alemão Karl Marx (1818-1883).
O núcleo mais assíduo do "Seminário Marx", como ficou conhecido, era composto pelo filósofo José Arthur Giannotti, o economista Paul Singer, o crítico literário Roberto Schwarz, o sociólogo Octávio Ianni e o historiador Fernando Novais, além de FHC.
Paul Singer se recorda que a primeira reunião foi na casa de FHC. O grupo se encontrava sempre aos sábados, durante a tarde, e depois jantava junto na casa do anfitrião, num esquema de rodízio.
"Não havia tradução do livro em português. Eu lia no original alemão. O Giannotti lia em francês", lembra Paul Singer. A regra do grupo era interpretar "O Capital" linha por linha. Às vezes, gastavam uma tarde inteira discutindo o significado de um único conceito, num exercício de rigor até então inédito entre os que se auto-denominavam marxistas.
Foi dali, sem dúvida, que nasceu o que se pode chamar "marxismo de cátedra" no Brasil. Todos eram intelectuais de esquerda, mas ninguém no grupo estava diretamente preocupado em "fazer a revolução" no dia seguinte.
Tratava-se de uma empreitada acadêmica, impulsionada sobretudo pelo espírito empreendedor de Giannotti, que concentrava a discussão sobre os aspectos lógicos do livro, na tentativa de entender o que era, afinal, a tal dialética.
Fernando Henrique era dos que mais desconfiava das filigranas a que descia o debate e torcia o nariz para as questões, por assim dizer, "liliputianas" em torno da "grande obra" de Marx. Anos depois, ao ver jovens alunos lendo "O Capital", FHC reagia sempre com ironia. "Ele dizia que as pessoas estavam rezando", lembra Singer.
Ironia ou não, coube a Fernando Henrique a tarefa de ser o primeiro a fazer a lição de casa e tirar as consequências dos anos de seminário. "Capitalismo e Escravidão" recorre à dialética marxista para explicar como uma sociedade baseada no trabalho escravo podia ao mesmo tempo ser capitalista.
Se o tema "capitalismo e escravidão" já era um clássico local, o livro de FHC tem o mérito de renová-lo, limpando a discussão do entulho que a cercava e dando às ciências sociais uspianas o tão almejado atestado de maioridade.
No aspecto estilístico, entretanto, o sociólogo se enredou num cipoal de referências e citações com resultado algo disforme, para não dizer desastrado. Em 1977, ao fazer um novo prefácio ao livro, ele toca no ponto quando relembra as influências teóricas que o animavam em 62. O trecho a seguir do prefácio mostra os desencontros do autor vistos por ele mesmo:
"No prefácio da edição de 1962 tento juntar o que lera em `O Capital' com a inspiração sartreana de como tornar a dialética utilizável na análise sociológica (sem comprometer-me com as teses da `Critique de la Raison Dialectique') e com a reivindicação lukacsiana da possibilidade de usar a noção de `consciência adequada', talvez algo weberiana e até mesmo (quanto adjetivo!) kantiana".
Um espírito maldoso diria que estamos diante de uma versão acadêmica da indecisão crônica que os adversários costumam atribuir ao senador tucano.
Melhor que isso talvez seja um comentário do crítico literário Roberto Schwarz, segundo quem "em matéria de dialética, nosso senador sempre foi um saci". Conhecendo-se a habitual ironia do autor da tirada, um velho amigo de FHC, pode-se dizer que "saci", no caso, contém a um só tempo elogio e crítica. Algo do tipo: lépido, porém manco.
Verdade ou não, Fernando Henrique abandonaria nos livros seguintes o tema da escravidão e a pretensão filosofante.
Teoria da dependência
Seu livro subsequente, "Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico" (1964), iria se ocupar do presente histórico, traço que passaria a ser recorrente em sua obra dali em diante.
A partir de entrevistas feitas com empresários entre julho de 1961 e outubro de 1962, FHC chegava a conclusão de que a idéia de uma "burguesia nacional" já era naquela altura uma quimera. Que esta em grande parte já se associara aos grandes grupos do capital estrangeiro, tornando-se deles um parceiro menor.
Não havia, como queria a cartilha comunista, conflito de interesses entre capital local e multinacional, mas cumplicidade e acomodamento de interesses.
Mas seria sobretudo a partir do lançamento do livro "Desenvolvimento e Dependência na América Latina", escrito entre 1966 e 67 em parceria com o argentino Enzo Faletto, que FHC tornou-se conhecido e citado no exterior.
Foi através desse livro que o termo "dependência" passou a fazer parte do jargão sociológico internacional, sobretudo nos círculos acadêmicos de esquerda.
Para formular a "teoria da dependência", FHC valeu-se do exílio no Chile, entre 64 e 67. Lá, travou contato com o pensamento da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), cujo maior representante no Brasil foi o economista Celso Furtado.
A repercussão da "teoria da dependência" no exterior foi grande. A ponto de dez anos após sua primeira aparição, em 1976, Fernando Henrique escrever um ensaio sobre "O Consumo da Teoria da Dependência nos EUA", publicado originalmente em francês.
No texto, FHC procurava acertar as contas com aqueles que teriam desfigurado sua construção teórica. O seguinte trecho do artigo dá a idéia geral do espírito que o movia na época:
"É preciso ter sentido (...) de ridículo e evitar o simplismo reducionista tão comum entre os modernos colecionadores de borboletas que abundam nas ciências sociais e passeiam pela história classificando tipos de dependência (...), na doce ilusão de que com seus achados vão retirar toda a ambiguidade, imaginação e inesperado da história".
`Deslize ideológico'
O trecho acima mostra que algo mudara na cabeça do sociólogo. Fernando Henrique usa a crítica que faz aos seus intérpretes para dizer que, àquela altura, seu problema já não era o dos anos 60.
Expressões como "ambiguidade, imaginação e inesperado da história" revelam alguém preocupado em pensar a prática política. Este é, aliás, o sentido mais geral de seu livro "Autoritarismo e Democratização" (1975), que marca sua última virada acadêmica.
Voltado para o estudo do Estado brasileiro, Fernando Henrique passa a interferir no debate sobre sua democratização, que então já se esboçava sob o governo de Ernesto Geisel (1974-79).
Foi nessa mesma época, não por acaso, que o sociólogo entrou para o mundo da "grande política" institucional –para nunca mais deixá-la. Trabalhando no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que havia ajudado a fundar em 1969, Fernando Henrique assume em 1973 a tarefa de pensar e articular a candidatura de Ulysses Guimarães para a eleição presidencial indireta de 1974.
"O Fernando é muito arguto. Percebeu logo que uma opção de esquerda não poderia ser majoritária e ele não queria arriscar sua carreira política. Há 20 anos, ele começou a abandonar progressivamente suas posições teóricas de esquerda", diz o atual presidente do Cebrap, o economista Francisco de Oliveira, eleitor de Lula.
Oliveira não fala sozinho. A conversão gradual de FHC no campo das idéias foi batizada pelo cientista político David Lehmann, da Universidade de Cambridge, Inglaterra, como um "deslizamento ideológico".
Num artigo de 1986 intitulado "Cardoso: da Dependência à Democracia", publicado na revista "Novos Estudos" do Cebrap, Lehmann mostra como a metamorfose do intelectual, na passagem dos 60 para os 70, é contemporânea e está ligada à ascensão do político profissional.
Hoje, o próprio FHC reconhece que passou por três fases intelectuais. A primeira, diz ele, "é a do livro de 1962 sobre capitalismo e escravidão". A segunda, continua, "trata da questão do desenvolvimento dos países dependentes, quando disse aos comunistas que eles estavam errados". A terceira, conclui, "veio nos anos 70, com os estudos sobre o Estado e o autoritarismo".
Como se vê, a autobiografia intelectual do candidato tucano coincide com a análise que fazem dele os seus críticos. Com uma diferença fundamental: FHC trata suas metamorfoses teóricas sem relacioná-las com as necessidades práticas de ascensão do político.
Esse nó voltou à tona no último dia 4. Convidado para fazer a conferência comemorativa do 25º aniversário do Cebrap, do qual foi presidente entre 1980 e 1982, FHC escolheu como tema "Os desafios teóricos dos anos 70".
Diante de cerca de 200 pessoas que lotaram o anfiteatro do Conselho Universitário da USP, o candidato reencarnou o professor com desenvoltura incomum para quem está afastado do "métier". Foi aplaudido, mas dividiu a platéia.
Ex-colegas do Cebrap e simpatizantes do PT ali presentes acham que FHC montou um quadro teórico do Brasil dos anos 70 cujo desenlace prático –ou ponto de fuga histórico– seria a sua candidatura à Presidência. Em suma, uma auto-propaganda disfarçada por uma camada de caramelo sociológico, como disse contrariado um cebrapiano logo após a conferência.
Lehmann, em seu artigo de 86, escreveu algo semelhante: "Suas (de FHC) declarações sobre vários temas de interesse do ponto de vista conceitual são muitas vezes ligeiramente evasivas, e ocasionalmente mesmo diplomáticas, como convém a um político travestido de sociólogo".

Colaborou FERNANDO RODRIGUES, da Reportagem Local

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