São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Íntegra do discurso que FHC não quis ler

"Faz parte da marca do PSDB o fato de que, entre nós, os projetos pessoais vêm sempre depois daquilo que entendemos ser melhor para o nosso partido e principalmente para o país. Chego a esta convenção certo de que vamos mais uma vez reforçar esta marca que nos orgulha e nos diferencia positivamente perante a opinião pública.
O PSDB, por intermédio de expressivas lideranças, manifestou seguidamente o desejo de que eu assumisse a candidatura à Presidência da República. Pouco antes do prazo final para minha desincompatibilização do cargo de ministro da Fazenda, recebi apelos neste sentido da Executiva Nacional, de direções regionais, de parlamentares e filiados do partido.
Antes disso, tanto eu como a direção do partido tentamos criar uma situação política que permitisse outra candidatura, capaz de assegurar a continuidade da recuperação econômica iniciada com atual Programa de Estabilização e que possibilitasse aquilo que verdadeiramente conta: abrir o país um caminho não só de esperança como de competência e seriedade na gestão da coisa pública, condições indispensáveis para o resgate da imensa dívida social.
Minha candidatura não nasce, portanto, de um ato de vontade pessoal, mas de uma situação objetiva que colocou nas mãos do PSDB a possibilidade, e com ela a responsabilidade, de liderar a caminhada do país na direção de suas aspirações.
No momento em que assumo minha parcela dessa responsabilidade, quero me dirigir aos convencionais e a todos os companheiros de partido, para expor de maneira muito direta e franca aquilo que considero fundamental sobre o papel que nos está reservado nestas eleições e no quadro político que irá emergir delas.
Começando pelo princípio: o PSDB é um partido, já diz o nome, social-democrata.
Para nós, social-democracia é muito mais do que um par de palavras a enfeitar uma sigla. O PSDB crê profundamente na democracia e na necessidade do avanço social. Por isso nosso primeiro e mais fundamental compromisso é com a erradicação da miséria que condena o conjunto da sociedade brasileira ao atraso.
O PSDB entende que, na sociedade moderna, o mercado só funciona a contento quando contrabalançado pela existência de um governo eficiente, a serviço do interesse público e não das burocracias nem das oligarquias. Ao contrário daqueles que pregam o Estado mínimo e, sob a bandeira do livre mercado, defendem na verdade os altos lucros e os salários exagerados dos executivos do setor privado, sem contrapartida social, nós trabalhamos a favor de um Estado enxuto, mas forte, para corrigir as distorções do mercado e executar políticas em favor dos mais pobres. Por isso combatemos com a mesma energia o clientelismo e o corporativismo, que minam a eficácia do Estado e o atrelam aos interesses de minorias.
Mas o PSDB também sabe que o mercado é instrumento indispensável na regulação econômica. Reconhece a importância da poupança e do investimento para gerar emprego, aumentar a produtividade do trabalho e assentar as bases materiais do bem-estar social. Sabe que a economia hoje está internacionalizada e que melhor será orientarmo-nos nesse processo segundo nossos interesses do que ignorá-lo e depois sermos, sem saber, objeto inerme de uma ação globalizadora à nossa revelia. Por isso somos um dos poucos partidos a preconizar a vinda de capitais estrangeiros para aumentar a acumulação produtiva e a absorção de novas tecnologias. E não nos inibem falsos pruridos ideológicos na negociação com os investidores nacionais ou estrangeiros. Já provamos nossa firmeza e competência para defender, diante deles, os interesses nacionais e populares pelos quais nos pautamos.
Esta é a visão da social-democracia moderna, que se distingue tanto do neoliberalismo dogmático e conservador como do nacional-corporativismo arcaico.
Coerentemente com ela, entendo que hoje, no Brasil, nosso combate principal é duplo: à inflação e à miséria. Permitam-me repetir aquilo que venho dizendo desde que assumi o Ministério da Fazenda: estas são as duas caras da mesma moeda, da qual o lado da inflação é como um placar que marca as sucessivas frustrações do país tentando se livrar das teias do atraso social e político no outro lado.
Minha já longa vivência política e a intensa participação na condução recente do governo me convenceram de que o Brasil chegou a um ponto extremo desorganização e falta de perspectivas. O país, à custa de amargas desilusões, não espera mais remédios mágicos para a inflação crônica e as mazelas sociais. Mas anseia como nunca por rumos claros e sustentados que lhe devolvam a confiança no futuro, mesmo sabendo que o futuro só se constrói com trabalho árduo e persistente. Propor esses rumos, dar-lhes sustentação firme, é a missão dos políticos que, como nós do PSDB, têm espírito público, quaisquer que sejam suas opiniões específicas sobre os problemas do país. E isto nós não conseguiremos no isolamento sobranceiro, nem dos partido, nem muito menos da sociedade.
Porque nasceu com a vocação de mudar concretamente o Brasil, e sabe que a envergadura das mudanças necessárias supera em muito a capacidade de qualquer força política isolada, o PSDB nunca cultivou uma atitude de arrogância nem se furtou à cooperação com outros partidos. Foi assim em 1989, quando, mesmo enfrentando dissensões internas e a quase nenhuma flexibilidade dos virtuais aliados na discussão programática, optamos claramente pelo apoio ao candidato do PT no segundo turno das eleições presidenciais. Foi assim no processo do impeachment de Collor de Mello, quando tivemos um papel decisivo na articulação de uma maioria parlamentar para sustentar a decisão reclamada pelo país de afastar o presidente e para dar condições de governabilidade ao seu sucessor legal.
Dentro da mesma linha de conduta, empenhamo-nos desde cedo na busca de alternativas a uma candidatura exclusiva do PSDB na próxima sucessão presidencial, partindo do princípio de que é sempre melhor negociar alianças às claras antes das eleições do que no recesso dos gabinetes depois. Não hesitariamos em oferecer a cabeça de chapa a outro partido se fosse esta a condição para viabilizar uma coligação baseada baseada num programa de recuperação nacional, sem concessões ao atraso político nem à demagogia.
Com esse propósito, mantivemos conversações com diferentes forças políticas.
Conversamos longamente com o PT. Este, no entanto, mostrou reiteradamente que reservava ao PSDB uma posição subalterna, com certo ar auto-suficiente de quem está bafejado momentaneamente pelas pesquisas eleitorais. Alianças, para o PT, somente sob sua hegemonia.
Mais grave ainda, o PT nunca aceitou uma postura realmente radical no sentido de ir à raiz das questões. Em vez de assumir qualquer parcela de responsabilidade pelas medidas necessárias para conter o déficit público, quebrar a ciranda financeira, reduzir o desemprego através do aumento do investimento, combater o clientelismo dentro da máquina do governo, e assim por diante, o PT tem preferido sempre a demagogia dos aumentos meramente nominais dos salários, imediatamente corroídos pela inflação, do atendimento das pressões corporativistas, da ingenuidade absoluta no trato de questões como a da dívida externa. Não se mostrou à altura de enfrentar os problemas reais do país.
Também conversamos com o PMDB. O diálogo fluiu franco e fácil. A direção do PMDB não pôde, entretanto, conduzir o processo de escolha do seu candidato presidencial sem que houvesse fragmentação e atropelo da discussão programática por postulações pessoais. Isto terminou por inviabilizar uma aliança, na medida em que lideranças peemedebistas com as quais temos maior afinidade passaram a ser contestadas e marginalizadas pelo neocoronelismo dentro de seu próprio partido.
Quando eu ainda estava no Ministério da Fazenda, depois das tentativas já mencionadas, a direção do PSDB foi procurada pelo PFL, com vistas a uma possível aliança eleitoral, cabendo ao PSDB indicar o candidato a presidente da República. Posteriormente, as conversações se estenderam ao PTB, que também veio a se incorporar à aliança.
A essa altura, as lideranças dos três partidos no Congresso identificavam uma ampla pauta de preocupações comuns em relação à revisão constitucional, que procuravam viabilizar junto com outras forças políticas e em face da obstrução encarniçada do PT e PDT.
Nós do PSDB fomos co-autores importantes da Constituição e disso nos orgulhamos: os avanços democráticos e as garantias sociais que lá estão foram escritos com nosso apoio (e às vezes, diga-se de passagem, sob acirrada crítica do PT, que se recusou a assinar a Constituição sob a alegação utópica de que estava aquém do desejável). Mas isso não nos impede de, responsavelmente, ver as limitações que a Constituição possui e defender modificações, sobretudo no campo fiscal, para dar maior viabilidade ao governo e ao país.
O insucesso da revisão constitucional nos inquieta, desse modo, como um sintoma grave da desorganização e falta de rumos já mencionadas, e principalmente como prenúncio das dificuldades que o futuro governo terá de enfrentar. O que só reforça nossa preocupação com a necessidade de compor uma maioria ampla o bastante, não só para ganhar as eleições nacionais, mas para dar curso às mudanças necessárias, tanto na esfera do Executivo como do Legislativo.
Nesse sentido, tanto eu como a direção partidária continuamos conversando com outras forças políticas, como o PP, o PPS, o PV e setores do PMDB. Assim como gostaríamos de voltar a conversar com o próprio PT, pensando nas condições de governabiLidade do país depois das eleições, se o PT não rechaçasse qualquer tentativa de diálogo que não tenha por suposto a adesão a candidaturas.
Trazemos para essa articulação a força das nossas convicções social-democratas e as diretrizes –de combate à inflação e à miséria, reorganização do Estado e modernizaçào da economia– em que elas se traduzem diante dos desafios do Brasil. Com base nelas iniciamos a elaboração do nosso programa de governo, onde especificaremos nossas metas e soluções para a geração de empregos, que será o eixo da nossa ação; a revolução educacional e a recuperaçào do sistema público de atendimento à saúde; a descentralização radical dos serviços públicos, aumentando a autonomia de estados e municípios; o enxugamento da máquina estatal, precisamente a fim de evitar seu desmantelamento e aumentar sua eficácia; o estímulo ao investimento produtivo, nacional e estrangeiro e o fomento à competivividade da economia brasileira.
As mesmas diretrizes programáticas norteiam nossas conversações sobre alianças eleitorais. É este o passo a ser dado agora, antes da discussão –mal posta, quando não posta de má fé– sobre supostos riscos de nos aliarmos a partidos com história distinta da nossa, como se em função dela o PSDB pudesse vir a se despreocupar de sua história e de seus compromissos programáticos.
Aos de boa fé respondo: alianças, quando são sérias, são feitas à base da definição de objetivos comuns, com o propósito de assegurar votos para ganhar eleições e dar sustentação ao futuro governo. Unindo partidos diferentes na sua história, na sua composição e no seu estilo, pois união entre os que pensam do mesmo jeito seria mais propriamente incorporação ou adesão do que aliança.
Acreditar que o PSDB sozinho vai eleger o Presidente e uma maioria de governadores e parlamentares que lhe permita governar o país, é ignorar os fatos mais elementares da realidade político-eleitoral. com apenas dois minutos no horário eleitoral gratuito de televisão e sem uma rede de diretórios municipais suficientemente densa, buscar o voto sem aliados nesta eleição seria como tentar romper pedreiras com as próprias mãos.
De outra parte, acreditar em desvirtuamento do nosso programa, da nossa ação de governo, do nosso estilo, porque fazemos alianças com outras forças, equivale a não acreditar em nós próprios. E por acaso não temos história enquanto partido? Acaso não temos biografia?
O governo Itamar Franco deu a oportunidade de mostrar ao país que o PSDB é capaz de imprimir sua marca, apesar da diversidade –e até das incongruências– das forças políticas em presença. Sem diminuir a importância da colaboração dos outros partidos, fomos capazes de propor ao país uma alternativa econômica cuja implantação, ora em curso, abriu no mínimo um horizonte de esperança.
Por que, agora, quando o PSDB encabeça uma coligação com seu candidato a Presidente, seríamos menos marcantes?
Não nos desfiguraremos nas alianças porque objetivos são claros e porque podemos afirmar sem medo que nós sabemos o que fazer e como fazer, pois já o fizemos.
Estou certo, por isso, que o PSDB continuará a agir de maneira responsável e realista. O realismo exige o conhecimento das verdades eleitorais. A responsabilidade exige determinação na consecução dos objetivos programáticos.
E tudo isso exige firmeza da direção do partido. A costura de alianças na política nacional nunca será fácil num país tão grande e diversificado como o Brasil, ainda mais com a colcha de retralhos que é o nosso sistema partidário. Quem tiver dificuldades regionais, contará com nossa compreensão para a busca de soluções políticas. Mas, a partir do momento em que a algazarra interna passa a ser usada contra nós pelo competidor, a escolha se impõe: quem for tucano nos apoiará.
O PSDB já provou, tanto na oposição como no governo, que não tem medo de escolhere o caminho mais difícil para ser coerente com seus princípios. Soubemos dizer não às benesses do poder quando o poder dava as costas para os interesses maiores do país e para o sentimento das ruas. Soubemos dizer sim aos desafios da governabilidade e da estabilização econômica quando os cínicos e os "puros", numa só voz, nos aconselhavam a empurrar os problemas do país com a barriga até as próximas eleicões (como se eleições e democracia fossem uma dádiva dos céus e não uma conquista que tem de ser renovada a cada dia pela capacidade dos democratas de tomar decisões).
Hoje a linha de coerência com essa trajetória nos conduz diretamente ao reconhecimento popular.
O povo cansou de politiquice, de falsos argumentos ideológicos, de alegadas purezas doutrinárias. Tanto quanto a corrupção, não suporta mais a ineficiência, a demagogia e a falta de decisão. Exige de quem pretende governá-lo que tenha firmeza e convicção para, sendo necessário, dizer não e enfrentar as forças contrárias. E ao dizer sim, cumprir o prometido. O que se faz com um programa realista de governo aliado à seriedade, competência e respaldo político para levá-lo à prática.
Esta é a marca do PSDB. Esta será a marca da minha candidatura. Com ela vamos para a vitória, que não será só nossa e dos nossos aliados mas do povo que soube conservar a fé na democracia à espera do momento em que ela começará a se traduzir em emprego, salário e dignidade para todos os brasileiros".

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Contagem, MG, 14 de maio de 1994

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