São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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O Mário Amato tem razão

RICARDO SEMLER

Volto da terra dos ancestrais do Mário Amato com suas célebres palavras soando em meus ouvidos –somos todos corruptos. Somos todos... Na Itália é a terceira vez que ocorre uma operação Mãos Limpas. A última foi há cerca de cem anos atrás, e tinha o mesmíssimo nome. Do lado de cá, o Fiuza parecendo sapo ensaboado no ralo de banheira. Levei um soco no estômago quando soube do Betinho e os bicheiros. Estava em Florença, passando pelos enormes prédios dos Médicis. Foi inevitável a analogia. Afinal, a questão da honra, além de ser subjetiva, é medida em gradações? Com aquele tanto de história italiana ao meu redor, pus me a catar piolhos em cabeça de macaco. Não há quem não enalteça os romanos por suas leis e organização, o Vaticano por sua solidez e os Médicis pelas suas contribuições inestimáveis para o mundo da cultura. No entanto, o Império Romano foi populado pela baderna moral e pelos subornos que iam de Herodes a César, e a Igreja Católica teve a corrupção como uma de suas companheiras mais importantes durante séculos. Uma grande quantidade de papas foi ungida através da compra de votos, e parte boa deles viveu em luxúria e corrupcão (houve épocas em que 30% dos padres tinham sífilis).
O que nos traz ao mais venerado benfeitor das artes de todos os tempos, Lorenzo de Médici, o Magnífico. Todos agradecem, com emoção mal contida, a família que criou Leonardo da Vinci, hospedou o Frei Lipi (aliás, um tarado incontível), financiou Brunelleschi e garantiu a fama de Michelangelo. Pouco se fala da realidade sórdida desta família, que aliás comprou tanto os papas que acabou fazendo de dois de seus membros chefes máximos da Igreja Católica. Foi uma das famílias mais corruptoras e chantageadoras de todos os tempos (o próprio Machiavelli escreveu suas observações sobre o poder baseado fortemente na família). Foram assassinos contumazes e nunca souberam o significado de dinheiro limpo. Mas são idolatrados em cinco continentes. Não foi diferente com os Rockefeller, os Carnegies e os Mellon, todos eles conhecidos, na época, como barões-gatunos. Basearam suas fortunas em trustes, acordos espúrios, financiamento de políticos e ampla corrupção. Mas, sem eles, não existiriam os museus, as bibliotecas e as universidades mais importantes dos EUA. O Hovermeyer, barão do truste do açúcar, doou uma das maiores coleções de arte do mundo, como o barão Thyssen-Bornemisza, cuja origem se encontra em trustes que violentavam o consumidor, e em fiéis serviços ao Adolph Hitler.
Nada disto inibe os que perambulam pelas suas benemerências, elogiando sem parar estes magníficos corruptos. Aqui temos famosas fundações, que efetivamente fazem o bem, porém constituidas por alguns dos maiores corruptores que o Brasil já viu. E agora, José? Afinal, se o Betinho está desculpado (e até incentivado pelos formadores de opinião –deveria ter pego mais, dizem), devemos também ter a humildade de homenagear os verdadeiros benfeitores, os bicheiros e traficantes. Afinal, foram eles que tiveram a sensibilidade de ajudar os aidéticos –o Betinho foi só intermediário. Conclui-se que aqui, como na Itália, a corrupção é um estilo de vida, inerente à nossa cultura. Há gradações, que vão do grande brasileiro que é o Betinho, passando pelos bem quistos Castor e Ivo Noal, e terminando com o feio, feio do PC. Mas que somos todos corruptos, não se discute. Vivam os Magníficos, então?

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