São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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São os lábios que nos traem

<FT:"MS SANS SERIF",SN>MOACYR SCLIAR

MOACYR SCLIAR
– Eu não reprovo essa moça que beijou o réu depois da absolvição – disse ela. Eu sei que isso foi uma imprudência –imagina só, beijar o cara na frente do promotor– eu sei que vai complicar a vida dele, mas não a condeno, absolutamente, não a condeno. Acho que a gente tem de entender bem o que se passou.
Ele a ouvia, sorvendo o choque em silêncio. "A gente tem de entender bem o que se passou" era uma frase típica: psicóloga amadora (na vida real era secretária), ela se julgava conhecedora da mente humana. Preparou-se para a explicação, que não tardou:
– A moça não tem culpa. São os lábios que nos traem. Porque os lábios foram feitos para provar, para modular a fala, mas foram feitos sobre tudo para beijar. É só o que os lábios querem: beijar. É por causa da mucosa, sabe? A mucosa é essa delicada membrana que nos forra por dentro. Ela deveria ficar em nossa intimidade, sequer aparecendo. Mas não: nos lábios ela projeta-se para fora, despudoradamente, eu diria. Por causa da mucosa, da úmida mucosa, os lábios anseiam por contato. Com outros lábios, ou pelo menos com a pele –do rosto, por exemplo. Presta atenção nas propagandas de lâminas de barbear na TV: aqueles rapazes que mostram o rosto liso, bem escanhoado, o que querem? Querem ser beijados. E os lábios não se fazem de rogados. Por causa dos lábios é que você me beijou quando eu cheguei aqui: seus lábios queriam a minha face e a tiveram. A expressão mais espantosa desta ânsia de beijar é o beijoqueiro, aquele cara que beija todo o mundo. Agora, se a moça tivesse olhado –ternamente, que fosse– o réu, nada teria acontecido. Se lhe tivesse acenado, também não haveria problema. Mas os lábios a traíram. Foi a incontrolável pulsão nascida em seus lábios que a levou até o moço. Beijou-o em pleno fórum, imagine só.
Não ele não estava imaginando nada. Sequer a ouvia. Olhava a boca bem desenhada, cujo batom agora ela retocava. E pensava que ela, afinal, estava querendo ser beijada. Era o que diziam seus lábios, e eles, mudos, não mentiam: afinal, não são os lábios que nos traem.

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