São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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O plano, a URV, o real e os economistas

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O economista Delfim Netto de vez em quando faz críticas ao plano do governo com as quais sou obrigada a concordar, por sua objetividade, apesar de seu passado e de sua atual condição: um dos deputados mais atuantes da direita deste país.
Na última quarta-feira, porém, o ex-ministro escreveu nesta Folha um artigo intitulado "Os economistas e a URV", no qual mistura um didatismo, herdado de sua condição de ex-professor, com meias verdades sobre a natureza do plano de estabilização e que termina com um pito nos seus colegas do atual governo.
Duas frases demonstram claramente o seu apreço ao lado conservador do plano e sua continuada adesão aos princípios do autoritarismo.
Diz ele, textualmente: "Estabelecendo que o salário real médio em URV permaneceria constante, as perturbações distributivas mais perigosas foram neutralizadas" e, no final do artigo, faz as seguintes considerações: "O lamentável é que o governo não consiga controlar os partidos que o apóiam. Eles deveriam ficar quietos... Nestes últimos 45 dias o silêncio é ouro!"
Evidentemente, o deputado gostaria de regressar ao silêncio de chumbo da ditadura onde ele fazia o que queria e negociava com a "bancada rural" sem que a imprensa pudesse noticiar como agora os acordos que o governo está fazendo para ver aprovada a MP.
A imprensa igualmente publicou os protestos do deputado Paulo Paim, do PT, contra um novo artigo, incluído na reedição da MP, que proíbe a correção automática dos salários convertidos em URV em prazo inferior a um ano.
Também publicou, meses atrás, embora sobre ataque geral dos editoriais e dos articulistas conservadores, uma proposta do mesmo deputado sobre a indexação mensal dos salários ao dólar, destinada a evitar justamente que a distribuição de renda, já de si péssima, piorasse mais ainda com a aceleração inflacionária.
Naquela altura, o deputado Delfim Netto foi um dos primeiros a atacar a proposta do PT que, no entanto, se destinava apenas a tentar garantir a neutralidade distributiva da dolarização disfarçada que estava a caminho.
É curioso que hoje Delfim reconheça em seu artigo que, afinal, o plano de estabilização "previu uma aceleração inflacionária que tenta mimetizar os efeitos de uma hiperinflação controlada" e, apesar disso, acha perfeitamente legítimo que, nas suas próprias palavras, "1º) A correção cambial seja praticamente coetânea com a inflação `projetada'; 2º) que a correção salarial tenha uma defasagem de apenas duas ou três semanas".
Com a aceleração inflacionária ocorrida a partir de novembro e uma inflação "projetada" pelo mercado financeiro de 50% ao mês para maio, a perda acumulada pelos assalariados é considerável e para os que não dispõem de conta corrente remunerada, que são a maioria, é intolerável.
Devo dizer que, apesar de minha admiração pelo plano Cavallo ser muito remota, tenho de admitir que quando a Argentina se aproximou da hiperinflação o seu ministro teve pelo menos a hombridade de fazer um acordo que comprometia os empresários argentinos a fixar os preços em dólar dos bens transáveis de primeira necessidade (em particular os alimentos), fixando também o salário mínimo em torno de US$ 125, cifra que era compatível com o custo da cesta básica familiar.
Ou seja, a dolarização argentina, ao ser instantânea, impediu a deterioração contínua do poder de compra dos salários e evitou uma catástrofe social.
Como sabemos, o nosso plano de estabilização não fez tal coisa. Manteve a liberdade de preços em cruzeiros reais e em dólar e não fixou sequer em URV os preços da cesta básica, a qual alcançou em março mais de US$ 90.
Teve, porém, a audácia inominável de fixar em URV (não-reajustável durante um ano) o valor do salário mínimo pelo equivalente, em 1º de março, a pouco mais de US$ 60.
Como os salários não são pagos em dólar nem em URV, mas em miseráveis cruzeiros reais, estamos assistindo ao maior arrocho salarial da história recente do Brasil, com este "inteligente" experimento de hiperinflação "controlada".
Prosseguindo o meu diálogo com o prof. Delfim Netto, faço um apelo à sua memória no que diz respeito aos oligopólios. Lembro-lhe que foi no seu seminário da USP, em 1961, que tive o privilégio de ser apresentada, por seu intermédio, ao falecido economista polonês Kalecki, que ensinou, a nós dois e a muitos economistas brasileiros e latino-americanos ali presentes, várias coisas que nunca deveriam ser esquecidas por nenhum economista.
Por exemplo: que não eram os salários reais (só conhecidos como um resultado "ex-post"), mas as margens de lucro dos oligopólios que determinavam tanto os níveis de preços praticados em mercado pelos vários setores quanto, em termos agregados, a distribuição de renda entre lucros e salários.
Assim, o oligopólio não é um "inimigo imaginário", mas um dado da realidade contemporânea que não se elimina por uma "abertura externa" pseudo-liberalizante, como ambos sabemos há muito tempo, em particular no que se refere ao preço da cesta básica.
A cesta básica de nenhum país pode ser inteiramente importada. No caso brasileiro, grande produtor e exportador de alimentos, o preço das importações afeta sobretudo os preços internos dos insumos, em particular os energéticos, que são um componente de custo muito importante na produção e transporte dos alimentos.
Ora, os preços da energia, graças à existência de monopólios de Estado que permitem subsídios cruzados (ordenados por prioridades estratégicas e para equalizar os preços em um mercado continental), estão entre os mais baratos do mundo, para desgosto das elites financeiras que tanto gostariam de vê-los privatizados.
Infelizmente, a taxa de câmbio que o governo pretende converter em âncora contra a inflação joga sempre um papel perverso nas atuais condições de estagnação do mercado interno e acirrada concorrência internacional.
Se a taxa de câmbio sobe, encarece o custo das importações de insumos básicos, da produção de alimentos e do transporte e o custo da dívida externa expressa na mesma moeda.
Se, pelo contrário, baixa, como é intenção do governo ao deixar atrasar a taxa real de câmbio e pretender congelar a nominal por certo período depois do real, ou as empresas deixam de exportar ou buscam formas de compensar essas perdas externas.
Quais são as formas conhecidas de compensação? Subir a margem de lucro interna, expressa em dólares. Seja através da elevação das taxas de juros cobrados para comprar dívida pública em troca das divisas entregues ao Banco Central, seja através de preços administrados internos mais altos em dólar, URV ou real.
Qualquer observador não muito sagaz reconhece que esta última solução foi a escolhida nos últimos meses (daí a chamada inflação em URV ou em dólar).
Por todas essas razões, os ex-ministros e o atual deveriam reconhecer que as etapas do plano de estabilização estão longe de ser "neutras" em qualquer sentido e que o candidato do governo teve cerca de um ano para corrigir o salário mínimo, o que é muito mais difícil de fazer depois de introduzir a nova moeda.
Aliás, todos os economistas que se pretendem sérios estão cansados de saber que não existe política econômica neutra. Assim, a política econômica, para ser eficaz, requer negociação e não imposição, nem silêncio, muito menos o silêncio dos tanques.
A necessidade de silêncio na terceira fase do plano decorre de que, uma vez descartada "por decreto" a questão dos salários, pelo menor poder de revide dos assalariados, o que está em tela de juízo é a distribuição intercapitalista de lucros e a conta a pagar pelo Tesouro para comprar o silêncio das classes dominantes e levá-las a apoiar o candidato do governo.
Evidentemente, custa caro "silenciar" a bancada rural e, mesmo em silêncio, é difícil negociar, por debaixo do pano, o artigo 36 da MP, que tanto preocupa os banqueiros.
O ex-ministro Delfim Netto, afinal, tem razão: nos próximos 45 dias, o silêncio vale ouro! Ou será que vale até chumbo?

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