São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O enigma da inflação em URV

GUSTAVO H. B. FRANCO

Conta-se que no Alasca existem mais de 50 palavras diferentes para designar neve. A profusão da língua reflete neste, como em outros casos, a riqueza da experiência cotidiana. No Brasil, da mesma forma, não são poucas as maneiras de se expressar um aumento generalizado nos preços.
As páginas econômicas dos jornais trazem, regularmente, uma vasta coleção de misteriosas siglas, senão vejamos: IGP e IPA, ambos da FGV-RJ (cada qual nas suas versões "DI" e "OG"; bem como "M", com seus respectivos decêndios, e "10").
Há também o IPC-Fipe e o IPC-Ipead-BH, o INPC (RJ e SP) e o IPCA (RJ e SP), ambos do IBGE, todos apresentando variações quadrissemanais, e ainda o INCC-FGV, o CUB, o IPC-FGV-Brasil, o INPC-Brasil e o IPCA-Brasil (também encontrados na versão "E"), o IRSM e o IPC-Dieese. Existem muitos outros, de cobertura regional ou setorial, e também diversas unidades fiscais estaduais e municipais.
Ainda que se possa justificar esta sopa de letras pelo fato de que cada qual é apurado de acordo com metodologia própria, procurando enfocar diferentes ângulos do fenômeno inflacionário, é inevitável o desespero do cidadão comum que, ao observar este verdadeiro léxico em javanês e, em especial, as discrepâncias entre os resultados, não pode deixar de pensar que a vida poderia ser mais simples e que estamos, talvez, desperdiçando energia demais na coexistência com a inflação.
Todavia, não chega a ser surpreendente este interesse deformado pelos índices de preços e sua hermética tecnologia. Advinhar a inflação é mais que simplesmente um frívolo esporte nacional: boa parte das aplicações financeiras é feita a partir de taxas nominais de juros e, portanto, o incentivo a acertar a inflação se torna monumental.
Não é por outro motivo que, hoje em dia, pelo menos 30 instituições financeiras e pelo menos uma dúzia de consultores privados montaram gigantescos departamentos de acompanhamento de índices de preços, pagando fortunas pelos serviços de especialistas de primeira linha, muitos com passagem pelo governo ou pelos próprios institutos de pesquisa e contando com extraordinários recursos informáticos.
Muitos desses produzem índices de preços em bases diárias, cobrindo diversas capitais, conseguindo antecipar, por vezes com incrível precisão, o comportamento dos principais índices e também, com frequência, logrando identificar erros dos próprios institutos. As reputações assim construídas são de tal ordem que as previsões de alguns alteram substancialmente as expectativas e os negócios nos mercados financeiros.
Enfim, trata-se de uma verdadeira indústria, essa da previsão de inflação, da qual muitos derivam o seu sustento e outros tantos notável prosperidade. Certamente, não por acidente ou idiossincrasia, vários desses revelam evidente preocupação com o fim da inflação. Muitos não sabem fazer outra coisa e, secreta ou mesmo abertamente, torcem para as coisas darem errado.
A criação da URV, à primeira vista, seria apenas um a mais desses verbetes. Mas a realidade foi bem outra.
A URV veio para simplificar uma das atividades mais conspícuas da vida desse país: a utilização de um indexador. Conceitualmente, foi definida como uma moeda de conta predominantemente contratual, com o objetivo adicional de permitir uma transição suave para níveis reduzidos de inflação, desintoxicando o organismo econômico dos vícios da inflação.
Tal como a heroína passa a compor o equilíbrio orgânico de um dependente, a inflação penetra nas relações econômicas, desfigurando preços e relações contratuais, transferindo riqueza, de tal sorte que a súbita privação da droga provoca privações de natureza imprevisível. Não há dúvida que viciados em estágio avançado precisam de um tratamento cuidadoso a gradualizado. Para isso, a URV.
Misteriosa ou não, A URV pegou. A credibilidade da URV é incontestável, bem como a percepção de que se trata de um estágio transicional para nos trazer de volta a uma realidade econômica há muito perdida.
Sua adoção não ocorreu por voluntarismo ou pela disposição patriótica de alguns. Os agentes econômicos a utilizam porque é de seu próprio interesse, este sendo, possivelmente, um dos grandes segredos deste programa: oferecer à sociedade, no âmbito do esforço de estabilização, mecanismos consistentes com os incentivos econômicos naturais em uma economia de mercado.
Naturalmente, a partir da introdução da URV como moeda de conta surgiu, de imediato, a questão da inflação em URV. Que quer dizer isso? Tendo em vista que a URV evolui aproximadamente de acordo com uma média de três índices de inflação, não seria uma redundância a inflação em URV? Terá significado econômico? Será uma prévia da inflação em real?
Vários equívocos têm sido cometidos ao se tentar, precipitadamente, entender todas as nuances dessa matéria. Certamente, não se deve dizer, de um preço estabelecido em cruzeiros reais, que, no momento de um aumento efetuado, digamos, quinzenalmente, houve aumento em URV. Este mesmo preço, convertido em URV dia-a-dia, mostra os já populares "picos" e "vales" ao longo do ciclo de reajuste. Pode haver mesmo deflação em URV, em se comparando preços médios com URVs médias.
Os iniciados sabem que os resultados dos índices considerados para a fixação da URV produzem, conjuntamente, um indicador que poderia, com certa liberalidade, ser interpretado como a média da variação dos preços em 30 dias, centrados no dia 4 de cada mês.
Assim sendo, comparando-se a evolução média dos preços no período atual com a variação mensal projetada pelos valores da URV, obtém-se percentuais diferentes, dos quais resulta a inflação em URV.
Face à metodologia empregada, a inflação em URV está correlacionada com a aceleração dos preços em cruzeiros reais. Essa correlação só seria evitada se, mediante bola de cristal, os técnicos que definem a URV soubessem exatamente a inflação no período presente.
É tentadora, não obstante, a interpretação de que a inflação em URV reflete o que há por sobre a chamada inércia inflacionária. Seria um indicador das verdadeiras pressões latentes sobre os preços e, portanto, um indicador da inflação em real, caso fossem eliminadas as pressões fiscais potenciais que emergem quando a inflação cai para níveis baixos e os mecanismos de repressão fiscal, tão amplamente utilizados no passado, se tornam ineficazes.
É razoável imaginar que a inflação em URV deve, em alguma medida, expressar coisas desse tipo, mas não se deve perder de vista que os fatores estatísticos anteriormente aludidos são de grande importância.
Os números para a inflação em URV desde janeiro de 1993, reproduzidos na tabela, foram calculados pelos próprios institutos de pesquisa, mediante solicitação do Banco Central.
A partir do mês de abril, esses índices serão publicados regularmente pelos respectivos institutos e deverão servir para que a sociedade se oriente durante a transição que nos levará ao real.
Os números não são surpreendentes. A média mensal da inflação em URV nos últimos 12 meses esteve entre 0,51% e 1,50%, ou seja, entre 6,3% e 19,5% em bases anuais. Nada mal se chegarmos a isto depois de 1º de julho.
É evidente, contudo, que, em julho, com a chegada do real, altera-se substancialmente o comportamento dos preços na nova moeda. Não serão mais tão importantes as vicissitudes estatísticas na determinação da inflação em real, se medida de modo a que as bases de comparação sejam compostas de preços em URV.
Os determinantes da inflação estarão ligados aos verdadeiros fundamentos do programa de estabilização, aos quais o governo atribuiu enorme ênfase desde o começo: o equilíbrio fiscal e a solidez das instituições e da política monetária.
A inflação irá experimentar uma queda extraordinária e, nunca é demais relembrar, sem choques, confiscos, congelamentos, tabelamentos e tablitas, mas através de um processo transparente de adaptação, mobilizando a sociedade através de um debate aberto e democrático acerca dos caminhos a seguir.

Texto Anterior: Avião novo; Fora do compasso; Morte anunciada; No circulante; Por conta; Novo condutor; Novo conselheiro; Base menor; A conferir; Ano de eleições
Próximo Texto: Preços em URV; Tarifas públicas; FGTS - exterior; Técnicos em radiologia; Menores aprendizes; Revenda
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.