São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Sobre as opções de crença

ERNEST GELLNER

O que é que impele alguém para o relativismo? Há várias considerações sobrepostas, negativas e positivas. É comum invocar o fato da diversidade da crença. Isso me parece uma consideração exagerada, tanto no que toca à psicologia quanto à lógica. A mera percepção da diversidade de idéias não parece abalar a convicção firme, não-relativa, absolutista de muitos indivíduos e comunidades. Às vezes até a confiança e o dogmatismo se alimentam de tal consciência. A nossa própria Fé não nos diz que há pagãos e hereges? Sua própria existência confirma ou ilustra a fé que eles negariam. A maneira com que pagãos e hereges se apegam a seus erros exemplifica eloqüentemente o que a própria fé nos diz sobre a perversidade do coração humano ou sobre os suportes sociais do conhecimento. Não nos abalamos tão facilmente. Que a verdade pareça diferente do outro lado dos Pirineus só faz iluminar o que sempre soubemos sobre o estado deplorável das coisas no outro lado das montanhas.
Do ponto de vista da lógica, a mera existência de opiniões divergentes, e mesmo a ampla difusão do erro, mesmo a predominância quantitativa de opiniões errôneas, de modo algum prejudica o caráter único e absoluto da verdade. A existência de proposições verdadeiras pressupõe a existência de suas negações errôneas. As proposições verdadeiras podem ser negadas de várias maneiras e, para cada predicado verdadeiramente atribuído ao sujeito, há incontáveis predicados falsos, prontos para usurpar o seu lugar. Portanto, com toda lógica, a população de afirmações falsas é incomparavelmente maior do que a de verdadeiras, uma espécie de multidão numerosa de bárbaros pressionando a cidadela sitiada da Verdade. E a verdade não é fácil de alcançar-se; se fosse, a ciência não seria a coisa gloriosa que é. Portanto, é bastante natural que essa população monstruosa de falsidades não só exista mas seja abraçada por tantos. Isso só ilustra a virtude brilhante daqueles que atingem a verdade.
Assim não é a mera consciência da diversidade que nos leva ao relativismo. É algo mais. De fato, duas coisas:
1. Ausência de critérios para avaliar essa diversidade, para escolher entre pretensões rivais dentro da multidão de posições.
2. Uma sofisticação acerca do que poderia ser chamado a maquinaria ou o suporte do conhecimento ou da opinião. O conhecimento não é, como ingenuamente poder-se-ia pensar, um contato imediato com a realidade pura. A articulação de proposições ou a percepção de dados pressupõe uma estrutura linguistico-conceitual que torna possível a afirmação de tais proposições ou a sensibilidade complexa que é, digamos, receptiva a esses dados. Mesmo, ou especialmente, a pele sensível, é uma coisa muito complexa. Mas essas molduras que tornam possíveis a afirmação ou o registro de uma idéia ou percepção, não são neutras. Como poder-se-ia transcender essas normas ou as suas pressuposições? (...)
Concentrar-me-ei no argumento da falta de normas.
A ausência de critérios gerais para avaliar as pretensões rivais à nossa fé pode ser ressentida como uma falta lamentável de algo que gostaríamos de ter mas, infelizmente, não possuímos. Do mesmo modo, entretanto, ela é hoje em dia muitas vezes aclamada como uma doutrina positiva, algo afirmado alegre e quase triunfalmente, e de modo algum como o reconhecimento desesperado de uma deficiência. Há diversas doutrinas na moda que nos dizem que os critérios de correção são interminavelmente variados e idiossincráticos, que são inerentes a cada prática, instituição, arte, conceito ou cultura e que não são redutíveis a princípios comuns. Todos os casos devem ser julgados segundo seus próprios méritos; todas as pontes devem ser atravessadas somente quando alcançadas. Dizem-nos que até o liberalismo político e a tolerância dependem de tal pluralidade e de seu reconhecimento voluntário.
Pode ser. Mas quer atinjamos a doutrina da ausência de critérios gerais pela auto-estrada ou pela estradinha vicinal, como uma liberação jubilosa e suporte do liberalismo político, ou como uma falta desesperadora de norma e luz-guia, seja como for, a conseqüência inescapável é a mesma: se não houver critérios gerais para guiar-nos, mesmo na escolha entre práticas vizinhas no interior de uma cultura ou sociedade, para não falar do cruzamento de fronteiras culturais, então o relativismo parecerá nossa condenação e destino. Não há meramente diversidade, há uma diversidade que não permite escolha racional, demonstrável ou obrigatória entre os elementos que recobre.
O argumento da falta de critérios gerais tem uma variante importante: o argumento do regresso. Quem guarda os guardiões? Mesmo se há ou houve critérios, se alguém propõe critérios rivais, como escolher entre eles? Ou então, se houvesse critérios de segunda instância para arbitrar tais casos, o problema reapareceria na etapa seguinte. O regresso da validação ou da justificação levanta sua cabeça perturbadora.
É interessante que o argumento do regresso não opera com igual persuasão em todos os campos. No ensaio de Steven Lukes sobre o relativismo ("Relativismo: Cognitivo e Moral", in "Aristotelian Society Proceedings Supplementary, vol. 48, 1974, NDR), o autor admite que se inclina, com desconforto, ao relativismo na moral e a sua negação em matéria de conhecimento. Farei algumas observações sobre essa assimetria.
Na moral, ou pelo menos na filosofia moral acadêmica, o argumento do regresso recebe uma espécie de confirmação do argumento extremamente influente e, de certo modo, mal denominado de Falácia Naturalista, que G.E. Moore formulou no começo do século e foi por um tempo amplamente aceito pelos especialistas. Em substância, quando reformulado num estilo e numa terminologia menos escolásticos do que os que seu propositor original empregou, o argumento se resume ao seguinte: a essência do mérito moral não pode ser igualada a alguma coisa específica e determinada, tal como, por exemplo, a Maior Felicidade do Maior Número, recomendada pelos utilitaristas. Pois se nós a igualamos desse modo, com isso automaticamente nos privaríamos de qualquer meio de até inquirir se realmente aquela coisa especificada e privilegiada, tal como por exemplo o bem estar da humanidade é boa, ou se é o único bem. Pois não se pode fazer uma pergunta sensata sobre uma identidade ou uma tautologia. Ela responde a si mesma, e a resposta é trivial. Mas não queremos que essa questão seja banal, e não lhe permitiremos sê-lo. Mesmo se concordássemos com um critério moral único e geral, como bons liberais não nos permitiremos sermos privados dos próprios instrumentos que nos permitem formular a questão ou buscar sua resposta. O "Newspeak" do "1984", de Orwell, deve ter sido construído de tal modo a tornar as questões e os pensamentos heréticos indizíveis e impensáveis; mas não aguentaremos a imposição de tais grilhões em nossa linguagem e pensamento.
Trata-se de um sentimento liberal admirável, com o qual concordo calorosamente. A formulação presente do argumento da Falácia Naturalista, aliás, tem para mim o grande mérito de apresentar a conclusão como o corolário de uma decisão de manter um esquema conceitual aberto e uma linguagem liberal que não prejudique nossos valores, em vez de ser um relatório fantástico sobre o comportamento de algumas entidades misteriosas chamadas idéias, ou, como alguns dos seguidores posteriores de Moore o apresentam, como um relatório suspeito e altamente impressionístico sobre os hábitos alegados dos usuários do inglês ou de outras línguas.
O que interessa para o propósito presente é, contudo, que o argumento, como o preço de uma linguagem livre e aberta, nos entrega ao embaraço do regresso e ao relativismo. Não há critério geral (pois isso silenciaria questionamentos morais), portanto, não há meio de dirimir disputas entre critérios menores e situacional ou culturalmente mais específicos; logo a diversidade é terminal. Daí o liberalismo. E não nos surpreende que esse seja o preço do liberalismo.
Ora, é curioso que isso seja muito mais persuasivo na esfera da moral do que na esfera do conhecimento. Uma identidade estabelecida entre o critério último do mérito moral e algo específico é repulsivo precisamente porque nos obrigaria daí em diante a esse algo específico, seja qual for.

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