São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Foi Matisse que convenceu Picasso a não colocar cores em `Guernica'

MARIO CESAR CARVALHO; DANIEL PIZA

Folha - Por que o sr. decidiu mudar-se para Paris em 1937?
Dias - Foi em 1937 que começou o Estado Novo e o Nordeste sofreu mais do que Rio e São Paulo. Tanto que todo mundo fugiu.
Folha - Por que sofreu mais?
Dias - O Estado Novo promoveu até queima de livros em praça pública no Nordeste. Queimaram a obra de Gilberto Freyre.
Eu era contra Getúlio Vargas, manifestava isso em jornais e fui preso várias vezes. Quando a prisão ficou cheia, apareceu lá um positivista meio maluco, o general Manoel Rabelo, e mandou soltar um bocado de gente.
Folha - Aí foi para Paris?
Dias - Não. Recebi uma carta do Di me chamando para Paris, mas fui para o Rio porque não conseguiria ir do Recife para a Europa.
Até para ir ao Rio você precisava de salvo-conduto da polícia. Depois fui para Bordeaux de navio, com umas cartas de recomendação. Mas ninguém quis ver. A entrada na França era livre.
Folha - O sr. foi encontrar Di?
Dias - Fui. Paulo Prado estava com o Di me esperando em Paris. Cheguei em plena Exposição Internacional, aquela euforia. Admiro muito Paulo porque ele ajudou a implantar o modernismo no Brasil.
Folha - Como assim?
Dias - Paulo esteve na Europa muito tempo. Foi presidente de uma grande companhia de café. Tinha uma fortuna muito grande.
Todos nós, modernos, devemos respeitá-lo. Conhecia todo mundo, Marinetti, Blaise Cendrars, tudo.
Foi Paulo quem me recomendou a Cendrars para ele organizar minha primeira exposição em Paris.
Folha - Foi em 1938 que o sr. conheceu Picasso?
Dias - Foi. Picasso, Éluard, Miró, Matisse.
Folha - Como o sr. conheceu Picasso?
Dias - Cheguei em plena guerra da Espanha e havia na Brigada Internacional muitos brasileiros que haviam lutado contra Franco. Conheci Picasso em Montparnasse, no meio daqueles espanhóis.
Folha - O sr. morava em Montparnasse?
Dias - Morava. Picasso chamava a gente para ir a seu ateliê e papapá... Pouco a pouco viramos amigos. Ele batizou minha filha, me dei com ele a vida inteira.
Como era muito incomodado, não sei se por mulheres, me pediu para que seu telefone ficasse em meu nome. Foi assim por 12 anos.
Folha - Picasso era temperamental, de difícil convivência?
Dias - Não, não. O difícil na vida dele é que era solicitado de manhã até a noite e vivia fugindo.
Folha - Solicitado por quem?
Dias - Ele queria trabalhar e tinha gente que comprava quadros dele por US$ l milhão, não sei onde, e queria que ele fosse ver. Ele não ia, não se metia nisso.
Folha - Vocês discutiam arte?
Dias - Não era discussão, mas se falava muito sobre arte. Era muito supersticioso. Tudo que entrava em seu ateliê não podia sair. Podia ser uma caixa de fósforo. Não sei qual era o medo.
Folha - O que vocês falavam sobre arte?
Dias - Naquele tempo ele pintava "Guernica" e falava sempre sobre o uso do preto e branco. Discutia muito: "Será que aquele quadro tem que levar cor?"
Isso ficou muito tempo na cabeça de Picasso, até que ele encontrou Matisse, um grande colorista. Matisse disse: "Não ponha cor nenhuma, porque esse quadro foi feito assim". Picasso queria pôr cor, era muito colorista, mas concordou.
Folha - Como era Matisse?
Dias - Era pequenininho, gordo, parecia uma barrica. Era muito amigo de Picasso. Só brigava com ele por causa de pintura.
Matisse batizava muitos quadros assim: "Retrato da princesa não sei o quê". Era mentira. Fazia aquilo para irritar o Picasso.
Folha - Picasso era um conquistador, como se diz?
Dias - Era. Uma vez ficou doente e foi para o Hospital Americano em Paris. Fumava muito e a enfermeira dizia: "Ah! não fume!".
Aí o Picasso dizia: "Eu queria andar com você quando sair daqui". A enfermeira respondia: "Ah! mas eu não gosto de fumo". Ele dizia: "Se você me der aquilo, não fumo mais." E o filho da mãe logo depois estava fumando...
Folha - O sr. foi influenciado por Picasso?
Dias - Todo mundo foi. Ele foi um dos homens que mais infuenciou e um dos mais influenciados.
Folha - É verdade que o sr. ficou em campo de concentração na 2ª Guerra?
Dias - Não, não. O Brasil tinha entrado na guerra e, como eu estava em Hamburgo, para me prevenir fui ao consulado do Brasil, falei com o cônsul e ele me integrou ao consulado como funcionário.
Folha - Foi ali que o sr. conheceu Guimarães Rosa?
Dias - Ele trabalhava no consulado em Hamburgo e fiquei no apartamento dele. Tinha um quarto independente, onde eu desenhava.
Folha - Rosa escrevia?
Dias - Estava escrevendo "Sagarana". Eu lia trechos e ele perguntava o que eu achava. Era muito bom. Ele era um grande amigo.
Folha - É verdade que ele escrevia sem dar bola para a guerra?
Dias - Ele escrevia o tempo inteiro. Adorava ler dicionários e Euclides da Cunha. Tinha grande admiração por "Os Sertões".
Folha - Como o sr. escapou?
Dias - Só escapamos porque houve uma troca de espiões alemães, que tinham sido presos no Brasil. Eles foram para Lisboa e nós fomos trocados ali.
Também não dava para ficar em Portugal nem na Espanha, que eram inteiramente pró-Hitler. A saída era voltar para o Brasil.
Mas me acovardei e fiquei cinco anos em Portugal, trabalhando.
Folha - O sr. chegou a trabalhar para a Resistência francesa?
Dias - Foi quando cheguei a Lisboa. Um dia um professor francês chamado Armand me perguntou se eu tinha condições de voltar à França não-ocupada.
Consegui sair de Portugal, chegar à Espanha e lá me encontrei com o embaixador do Brasil, um amigo meu, o Raul Jorge, que facilitou a minha ida à França.
Folha - Para onde o sr. foi?
Dias - Para Clermont-Ferrand, mas eu tinha de ir a Vichy para obter meu salvo-conduto.
Foi aí que Louis Parrot, editor da revista "Lettres Françaises", me disse: "Você tem uma incumbência que é muito importante para nós todos. É uma poesia de Éluard, `Liberté', e você vai ver se encontra condições de ir a Londres ou mandar fazer com que isso chegue lá, às mãos de Penrose".
Penrose era pintor e coronel da Royal Air Force na guerra. Recebi a poesia de Éluard, voltei a Lisboa e fui à embaixada inglesa.
Lá conheci um fulano que tinha sido cônsul em Santos. Eu disse: "É o sr. mesmo que quero. A embaixada inglesa tem condições de mandar essa poesia?"
Folha - E tinha?
Dias - Tinha. Não sei como se arranjaram. A poesia chegou em Londres e de avião jogaram sobre a França, Bélgica, Holanda.
Folha - No pós-guerra o sr. adere à abstração?
Dias - Quando saí da França já começava o movimento abstrato e aquilo me perturbou os sentidos.
Encontrei uma espécie de lirismo, principalmente na obra de Kandinski. Fui o primeiro a fazer na América do Sul um mural abstrato, em Pernambuco, em 1948. Pintaram esse painel como se fosse uma parede umas oito vezes.
Folha - Por quê?
Dias - Nunca soube se foi por causa de política. É um mistério.
Folha - O sr. fazia uma pintura onírica e, de repente, entra na abstração. Como foi a mudança?
Dias - É como uma cachaça. Você é envolvido por idéias, por coisas bonitas. Vi uns quadros de Picasso que eram um convite para uma pintura mais fora da figura.
Olha, não sou profeta, não sei de nada, não sei o que vai ser da pintura amanhã ou depois. Sei que é difícil, só isso.
Folha - O sr. sempre cultivou o lirismo e nos anos 50 se aproximou dos concretos. Dá para conciliar lirismo e concretismo?
Dias - Não acho que tenha sido concreto. Estava muito perto de uma coisa concreta, mas mesmo pelas cores não se pode dizer.
Folha - O sr. começa figurativo, passa pela abstração, tem um período que é quase concreto e volta à figura. Por quê?
Dias - Não, eu não voltei à figura. Quando fiz o painel sobre Frei Caneca tive grande dificuldade. Levei quase dois anos porque ele é muito didático, explica tudo.
Antes, fiz uma série de coisas figurativas, mas depois tornei à abstração. Sou um pintor abstrato.
Folha - Por que o sr. diz que o mural é seu suporte preferido?
Dias - Porque vai mais diretamente ao povo. No lugar onde fiz o Frei Caneca, no Recife, passam milhares de pessoas por dia.
Folha - Há alguma influência do muralismo mexicano?
Dias - Não, combati o muralismo mexicano porque era muito didático, queria fazer arte social e eu era contra a arte social. Não existe arte social, só arte. Engajamento em arte não tem sentido.
Folha - Sua obra sofreu influência de quadrinhos?
Dias - Claro. Michelangelo na Capela Sistina não fez outra coisa senão quadrinhos. Foi nele que me inspirei para fazer minha história em quadrinhos.
Folha - O sr. fala que não acredita em rupturas e participou de uma das maiores rupturas neste século, que foi o modernismo.
Dias - Não acredito, porque um dos homens que anunciou a arte abstrata foi o Cézanne, que era naturalista no começo da carreira.
O abstracionismo está ligado a toda pintura primitiva italiana, Cimabue, por exemplo. Não vejo ruptura. Tudo está interligado.
Folha - Virou moda na crítica desdenhar a obra de Di e Portinari porque seriam modernistas acadêmicos. O sr. concorda?
Dias - Não creio nisso. Acho um erro tentar diminuir a importância do modernismo. Os artistas que vieram depois não fazem coisas melhores. São do mesmo nível.
É como diminuir Morandi porque ele só pintava garrafas. É idiota. Fiz parte da Escola de Altamira, que funcionava numa caverna pré-histórica na Espanha e foi fechada pelo Franco. Miró também dava aula lá comigo. Não existe arte mais moderna do que a pintura pré-histórica. Está tudo lá.
Folha - Por que o sr. pinta sempre imagens de sua infância? O mundo de hoje não lhe interessa?
Dias - Interessa muito. Mas não abandono as raízes, como Chagall não abandonou suas raízes russas, nem Picasso as suas raízes da Espanha. A raiz é a obra do sujeito, ela te alimenta. Não dá para fugir.
Folha - O curador da Bienal, Nelson Aguilar, diz que o sr. não é devidamente reconhecido na história da arte brasileira. O sr. se sente injustiçado?
Dias - Não. Tenho consciência do que fiz para a arte brasileira e acho que fiz bem a ela.
Folha - Por que o sr. pinta?
Dias - Porque tenho necessidade fisiológica.

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