São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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O ÚLTIMO DOS MODERNISTAS

MARIO CESAR CARVALHO; DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Cícero Dias, 87, é pintor desde os tempos em que o modernismo provocava brigas. Brigas de verdade, com troca de impropérios, tapas e telas rasgadas.
Ele não viu, mas nos anos 30 seu painel "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife" perdeu três metros dos 15,5 originais. Era a parte que mostrava "mulheres nuas e ação", como ele diz.
O painel perdeu três metros, mas a arte brasileira ganhava ali um artista que passou por quase todos os movimentos da primeira metade deste século.
Foi modernista, surrealista, abstrato e quase concretista.
Nascido em 5 de março de 1907 em Escada (PE), o filho de usineiro chegou ao Rio em 1925, bem no olho do furacão modernista.
Foi amigo de Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Gilberto Freyre, Di Cavalcanti e Portinari, entre outros.
Em Paris, para onde fugiu do Estado Novo em 1937 e onde vive até hoje, não seria diferente. Conheceu Picasso, Matisse e Miró.
Na sua passagem por São Paulo, onde veio ver suas obras na "Bienal Brasil", Cícero falou à Folha.
Ele conta como virou surrealista sem saber, revela que Picasso queria colorir "Guernica"–painel sobre os horrores de um ataque nazista a uma cidade espanhola em 1937–, e chama de "idiotas" os ataques da crítica ao modernismo.

Folha - Como virou pintor?
Cícero Dias - Eu nasci pintor e fui pintor a minha vida inteira. Com seis, sete anos já pintava; com 14 fazia quadro e tudo. Tinha uma tia, a Angelina, que era pintora e me ensinou umas coisas.
Folha - Nunca mais estudou pintura?
Dias - No Colégio São Bento, no Rio, tomei aulas com um professor, o Eustórgio Wanderley.
Folha - Por que o sr. abandonou o curso de arquitetura?
Dias - Abandonei porque o número me metia medo. Arquitetura, para mim, era uma questão de volumes, planos e linhas. Mas na faculdade havia cálculo de material, muita preocupação com a engenharia, e eu não esperava isso.
Folha - Como foi sua primeira exposição?
Dias - Foi em 1928. Nessa época eu já estava fazendo esse quadro grande que está na Bienal, chamado "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife".
Não era fácil expor, porque não tinha local. Havia um único local no Rio, o Palace Hotel, mas o aluguel era caro, então fui fazer minha exposição na Policlínica.
Folha - Era um hospital?
Dias - Era uma clínica de médicos, sobretudo psiquiatras. Psicanálise estava em moda em 1928, teve o 1º Congresso de Psicanálise e a exposição foi muito visitada.
Folha - O sr. sofreu influência da psicanálise?
Dias - Não, mas pelos dizeres dos outros que acompanham meu trabalho é uma pintura muito chegada ao sonho. "Eu Vi o Mundo" é um quadro puramente onírico.
Folha - Como o sr. chegou ao surrealismo? Conhecia Chagall?
Dias - Foi em 1927, por aí, e eu não conhecia Chagall. Um crítico do "Le Monde" escreveu o prefácio de uma mostra que estou fazendo em Paris e prova que eu não podia conhecer porque não vinham para cá revistas sobre o moderno.
O que vinham eram informações. Oswald de Andrade, Tarsila, Segall, Di, todos eles viviam na Europa e traziam informações.
Quando apareci, você vê pelo grande painel, fui inteiramente diferente dos outros. A minha participação foi enorme. Eu não diria que são imagens fundadoras, mas há um pouco de pioneirismo.
Folha - De onde o sr. tirava aquelas imagens?
Dias - Do folclore, de histórias que víamos. Quando pus o título "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife", em 1929, ninguém conhecia aqui a obra de Joyce.
A obra toda de Joyce é "eu vi o mundo, ele começava em Dublin". Era tão ligado à Irlanda que seu vinho francês predileto era St. Patrick, o padroeiro da Irlanda.
Folha - O sr. lia cordel?
Dias - Ele vinha a mim, mesmo às vezes sem chamar. Eu ia ao mercado no Rio, no Recife e encontrava toda aquela literatura.
Folha - Tem algo intrigante em "Eu Vi o Mundo": tudo flutua. Como o sr. teve a idéia de acabar com o eixo da pintura?
Dias - É que nos sonhos todo espaço é flutuante.
Folha - É simples assim?
Dias - É. Era uma necessidade, também. Quando Mário de Andrade escreveu sobre mim, dizia que nenhum daqueles bichos representa verdadeiramente um bicho. Você não pode dizer que seja um cachorro, uma cobra. Era o arquétipo do bicho, como dizia o Mário.
Folha - Como era a reação às exposições de arte moderna?
Dias - Hoje ninguém mais fica horrorizado com nada. Mas em 1928 o sujeito ia lá para romper quadros, cortar com a navalha.
Folha - Por que a violência?
Dias - Não quero chamar a burguesia de ignorante, porque havia homens de ciência extraordinários, como o Chagas, que descobriu a doença de Chagas, o Oswaldo Cruz. Mas faltava informação.
Hoje é que você vê como o mundo está muito melhor, porque tem um bocado de informações.
Folha - Havia brigas nessas exposições?
Dias - Quando a Tarsila expôs no Palace Hotel, um sujeito chegou perto do quadro e começou a dizer impropérios: bababá, bababá. Oswald, que já estava um pouco bebido e era muito violento, jogou o sujeito no chão e rebolaram.
Folha - O sr. teve alguma obra danificada?
Dias - Tiraram três metros do painel "Eu Vi o Mundo". Dizem que foi entregue a um senador.
Folha - Quem seria?
Dias - Nunca soube. Interessante é que ele só tirou a parte erótica.
Folha - Era a parte que o Mário de Andrade dizia ter uma "porção de imoralidades"?
Dias - Era. Chamavam de imoral aquilo que todo mundo conhece: mulher nua e ação (risos).
Folha - Como o sr. tomou contato com o modernismo?
Dias - Eu estudava arquitetura e pintura no Rio, tinha 17 anos e frequentava muito aquelas rodas todas, ia a qualquer exposição.
A primeira exposição verdadeiramente moderna que vi foi em 1926, do Di Cavalcanti. O Di tinha voltado da Europa, onde havia conhecido o cubismo. Conheci Di e marcamos um encontro num bar.
Foi assim que comecei a encontrar pessoas como Manuel Bandeira. Sempre fui ligado aos poetas, tenho a maior admiração pelo que escreveram sobre mim, porque o poeta é uma espécie de profeta.
Folha - O sr. foi amigo de Murilo Mendes, Manuel Bandeira e Mário de Andrade. A literatura deixou marcas na sua obra?
Dias - Não, tenho até a impressão de que a pintura veio até antes da literatura moderna no Brasil.
Folha - Como assim?
Dias - A poesia moderna começa com "Paulicéia Desvairada", do Mário, por volta de 1922. Em 1917, a Anita Malfatti já tinha exposto. Na Semana de Arte Moderna tinha muita pintura.
Quando a literatura chegou os pintores estavam muito à frente. Na década de 20 havia um enorme número de pintores e foi só na década de 30 que apareceram os romances brasileiros.
Folha - Por que o sr. tinha tantos amigos escritores?
Dias - Pelo bate-papo. Eles conheciam coisas interessantes.
Folha - Como era sua amizade com Mário de Andrade?
Dias - Mário apareceu no Recife depois da viagem que fez ao Amazonas. Isso foi em 1929. Nessa época fiz uma exposição no interior do Estado para sentir a reação do homem do povo diante de obras modernas.
Mário fez uma espécie de conferência na praça. Senti que a reação do homem do povo era muito direta. Eles sentiram plasticamente muita coisa superior à burguesia.
Folha - Por que o modernismo era bem recebido no interior?
Dias - Acho que a alma dessa gente do povo é mais pura. Eles têm um respeito enorme pela cor.
Viam o azul no quadro e imaginavam o manto de Nossa Senhora. Quando viam o roxo, diziam: "Olha a batina do padre!" Havia ligações muito interessantes.
Folha - O sr. foi grande amigo do Gilberto Freyre. O regionalismo do grupo do Recife influenciou seu trabalho?
Dias - Não, porque eu fiz antes dele. "Casa Grande & Senzala" saiu em 1933 e toda a minha produção é de 1928, 1927, 1926.
Quando fui fazer a ilustração para "Casa Grande & Senzala" senti que havia um contraste enorme com tudo o que havia de sociologia no Brasil. Ele abriu um campo muito vasto para a sociologia.
Folha - O sr. diz que sua pintura não tem influência literária, mas ela não teria uma certa afinidade com a poesia?
Dias - Tem uma afinidade muito grande. Leio muito São João da Cruz, Santa Tereza D'Ávila. Ela tem uma expressão bonita: "Sem poesia o homem não viveria."
Folha - Como a poesia aparece em seu trabalho?
Dias - Aparece na minha construção mental quase instintivamente. Porque a força da arte está no instinto. Depois do instinto é que ela toma forma.
Folha - Há algum paralelo entre a evocação que o sr. faz do Recife e as reminiscências poéticas de Manuel Bandeira?
Dias - Conheci muito o Bandeira, fui vizinho dele em Santa Tereza quando pintei o painel "Eu Vi o Mundo". Tem alguma afinidade no sentimento, na saudade.
Num de seus poemas, ele fala das vezes que saíamos para beber no Palace Hotel. Ele não aguentava beber muito, tinha sido tuberculoso e eu já bebia mais.
Folha - Como eram as farras dessa turma? O Mário de Andrade conta em "O Turista Aprendiz" que no Carnaval de 1929 ele e o sr. ficavam tomando porres de éter e de cocaína.
Dias - Naquela época se usava mais éter, não tanto cocaína. O éter era um produto que vinha do Carnaval, o lança-perfume. Todo mundo cheirava. Cocaína era menos. Acho um pouco exagerada a fala do Mário sobre cocaína.
Folha - Quem entendia mais de artes plásticas entre os modernistas: Murilo Mendes ou Mário de Andrade?
Dias - Tenho a impressão que nenhum deles entendia de arte, de fato. Tinham uma sensibilidade poética e faziam críticas poéticas, que eu gosto muito.
O Murilo só foi entender depois da guerra e se tornou um grande crítico. Mário não conseguia fazer críticas mais analíticas.
Folha - Há críticos que identificam na obra do sr. uma certa influência flamenga. O sr. conhecia os pintores holandeses que vieram para o Brasil?
Dias - Conhecia Frans Post, Eckhout, esses quadros estavam no Palácio do Governo, no Museu Metropolitano de Recife.
Frans Post percebeu a horizontalidade do Nordeste. Ele chegou de navio e ficou encantado com o horizonte sem fim das praias.
Eckhout pegou muito a cor, a cor das frutas, da natureza. Pode ser que essas duas características apareçam na minha obra.
Folha - O sr. ilustrou livros de Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Murilo Mendes.
Dias - Eles pediam e eu fazia.
Folha - Não teve problemas de trabalhar sob encomenda?
Dias - Tive com "Frei Caneca", esse quadro encomendado pelo Estado de Pernambuco. Pediram uma pintura didática e não sou chegado a pinturas didáticas.
Mas eu queria, como Sérgio Milliet falou da Tarsila, dar uma mensagem social. Ela pintou operários. Escolhi um frade que nas revoluções liberais de 1817 e 1824 foi encapuzado e fuzilado.
Frei Caneca atingia o Estado político. Falava em República numa época em falar isso era como a peste, era pior que ser comunista.
Folha - O sr. pesquisou para pintar o painel?
Dias - Li quase tudo sobre o assunto. Calça de ganga igual à de Frei Caneca você acha num dos quadros mais sérios de Goya, aquele do fuzilamento. Eram calças amarelas que a Inquisição mandava fabricar na Índia.
Folha - O sr. falou em Santa Tereza, São João da Cruz e Frei Caneca. É religioso?
Dias - Em certo sentido, não. Agora, eu nasci cristão, acredito em Deus, fui batizado e tudo. Essa questão nunca me perturbou.

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