São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Procura-se visão adulta para a guerra da Bósnia

DAVID RIEFF
DA "THE NEW REPUBLIC"

Não deveria haver guerras nas florestas da Europa na década de 90, entre pessoas para quem era corriqueiro ter casas de praia, dois carros e instrução universitária. As guerras aconteceriam só no mundo pobre. Num país rico como a antiga Iugoslávia supunha-se que uma paz civilizada devesse reinar.
Se existe entre os jornalistas que cobrem a guerra da Bósnia uma tendência a sentimentalizar o que acontece no país, isso se deve em parte aos próprios bósnios. A última anotação no diário de Zlata diz: "As pessoas se preocupam conosco, pensam sobre nós, mas subumanos querem nos destruir. Somos inocentes. (...) Mas somos impotentes!" É comovente, e até certo ponto representativo.
Mas as imagens canônicas do sofrimento bósnio têm sido imagens de crianças feridas. O "Diário de Zlata", lançado em 12 países, transformou-se em best-seller na França e foi vendido à Universal Pictures. Houve a criança cegada que Bianca Jagger fez sair da Bósnia e levou para viver temporariamente com ela; a menina Irma, no hospital Kosevo (Sarajevo), cuja situação levou autoridades européias e norte-americanas a acelerar a retirada de feridos da cidade: são as histórias que "funcionaram".
Como diz Janine di Giovanni, no prefácio do livro, "quando Zlata começou seu diário (...) não fazia idéia de que a casa de campo de sua família seria destruída, e que suas melhores amigas seriam mortas brincando num parque".
O que, então, Zlata fazia no dia 30 de março de 1992, antes do cerco de Sarajevo começar, muito antes de tornar-se claro que iria continuar por pelo menos 22 meses e que destruiria a cidade, comparando-se a Anne Frank? E mesmo que ela soubesse de sua alegada predecessora, por que imaginaria que também ficaria presa em Sarajevo? O livro contém mais material estranho. Muitas vezes ela passa das descrições de suas experiências cotidianas a relatos gerais de acontecimentos políticos e da guerra. Pior, o diário, como saiu publicado pela Viking Penguin, não corresponde a uma edição anterior da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) na Croácia.
É verdade que a primeira versão teve outro tradutor, e contém apenas uma seleção do diário. Mas também contém uma cópia do original. Num número significativo de anotações, materiais incluídos na edição da Viking Penguin estão ausentes. Consideremos as anotações de 3 de abril de 1992 (véspera do cerco). Na edição Viking (os trechos abaixo foram traduzidos da "The New Republic"; a edição da Companhia das Letras foi traduzida da edição francesa, que partiu do mesmo texto da Viking):

"Querida Mimmy, Mamãe está no trabalho. Papai foi a Zenica. Eu já voltei da escola e estou pensando. Azra parte hoje para a Áustria. Ela está com medo da guerra. Uau! Mesmo assim, fico pensando no que Melica ouviu na cabeleireira. O que eu vou fazer se bombardearem Sarajevo? Safia está aqui e eu estou ouvindo a Rádio-M. Eu me sinto mais segura. (...)
Papai voltou de Zenica chateado. Ele diz que tem multidões imensas nas estações de trem e de ônibus. As pessoas deixam Sarajevo. Cenas tristes. São as pessoas que acreditam na desinformação. Todo mundo está chorando.."

Mas o parágrafo sobre Zenica não consta da edição original. Na tradução original, do poeta e tradutor bósnio Ferida Durakovic, a anotação deste dia diz:
"Querida Mimmy, O que eu faço se bombardearem Sarajevo? Azra parte hoje para a Áustria. Ela está com medo da guerra. Uau! Estou ouvindo a Radio-M. Estou me sentindo mais segura. Mamãe disse que aquilo que Melica ouviu na cabeleireira é desinformação. Ó Deus, eu queria que fôsse mesmo. Mimmy, te amo".
O pai de Anne Frank foi criticado por haver suprimido referências sexuais e familiares no diário de sua filha. No caso de Zlata, o problema é que muita coisa foi acrescentada. Comparem o texto original com a transcrição na edição Viking para o 1º de outubro de 1992. A primeira versão diz:

"Querida Mimmy, chegou! Outubro chegou! Vamos levar um fogareiro para o primeiro andar.
Mamãe veio trabalhar hoje em choque: duas amigas dela vieram de Grbavica. Nenhum sinal dos parentes de Mamãe, nem dos de Nedo ou Lela."

A anotação pode não ser bem escrita, mas em poucas palavras transmite ao leitor o cotidiano na Sarajevo sitiada. Já a edição Viking faz um tanto esforço para criar efeito que perde a contundência:

"Querida Mimmy, A primavera chegou e já se foi, o verão chegou e já se foi e agora é outono. Outubro começou. E a guerra ainda continua. Os dias estão ficando mais curtos e mais frios. Daqui a pouco vamos levar o fogão para o primeiro andar, no apartamento. Mas como vamos nos manter aquecidos? Deus, será que alguém está pensando em nós, aqui em Sarajevo? Será que vamos começar o inverno sem eletricidade, água ou gás, e com uma guerra?
Os `rapazes' estão negociando. (...) Será que eles pensam em nós quando negociam ou será que cada um apenas tenta levar vantagem sobre o outro (...)?
Papai checou o sótão e o porão, à procura de madeira. Parece que parte dos móveis vai acabar no fogão, se a situação continuar como está até o inverno. Parece que ninguém pensa em nós (...)."

Em vez de uma garota falando do problemas do inverno que se aproxima, somos lembrados de que a bela mobília dentro em breve see transformará em lenha. É pena, as interpolações não acrescentam nada ao diário de Zlata. O que é preciso é um ponto de vista adulto –que Zlata não pode oferecer.
Sarajevo é uma cidade sob cerco cruel. Isto já constitui motivo suficiente para uma intervenção ocidental. Mas Sarajevo não é Auschwitz, nem Zlata é Anne Frank. Anne Frank e seus pais não foram autorizados a abandonar seu esconderijo para fazer uma viagem por cinco cidades para promover seu livro. Este foi o feliz destino da família Filipovic –misterioso, já que menores de idade não são permitidos em vôos da ONU.
Zlata é a primeira celebridade da Bósnia. Mas a mesma atenção deveria ser dedicada a livros de bósnios adultos, como Zlatko Dizdarevic, editor do jornal "Oslobodenje", de Sarajevo. Em seu livro "Sarajevo: A War Journal" (Sarajevo: Diário da Guerra), ele oferece um modelo de militância e coragem. As pessoas podem ser heróis sem serem crianças.

Tradução de Clara Allain

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