São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Viagem pelo Brasil de Tarsila ao Carandiru

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Começo o longo "travelling" pela "Bienal Brasil", ao lado de Nuno Ramos, artista do segundo período da geração 80. Veremos seu trabalho sobre o massacre de Carandiru, o "111", exposto como um desastre ao final de nosso percurso. Eu pergunto e ele fala, numa viagem pela Bienal em que o Brasil é visto pelos seus espelhos. Através dos quadros, nos revemos.
"Esta exposição vem em lugar de um museu", me diz Nuno. "O museu não tem centro; esta exposição, apesar de nos dever um critério, é boa." Talvez até sua falta de nitidez seja boa (penso).
Qualquer palavra mais forte pesa no mar, sua linguagem protege um sentido leve. Passamos pelos quadros de Anita Malfatti e Tarsila. "O modernismo brasileiro, muito mais do que uma destruição transgressiva, buscou a imagem do país. Veja, (diante de um quadro de Tarsila), veja que Tarsila fez um tipo de cubismo brasileiro que nunca se livrou da linha do horizonte. Nossa paisagem é tão forte que permaneceu. O modernismo foi um movimento muito mais literário que plástico. Um tanto sem centro. A meu ver, até a chegada de Guignard e Goeldi, a plasticidade do modernismo nacional não tinha atingido sua plenitude.
Guignard surge em vários quadros a nossa frente. "Você veja, parece que tudo está dentro de um aquário nesta tela. A paisagem verde imensa com a igreja de Minas. O tema não basta, veja, a representação só não basta. Em Guignard as coisas são nevoentas, é uma idéia de Brasil se compondo, há uma compreensão tardia mas profunda de Cézanne. Guignard parece 'naif', mas não é. Alguns poemas de viagem de Oswald lembram Guignard. Olha o Goeldi ali, que coisa genial! Goeldi é um contraponto do Brasil, é um Guignard noturno. Veja estas gravuras, parece Noel Rosa na Lapa. Por elas vemos que o Rio é úmido, não tem aquele trópico burro e ensolarado. A luz em Goeldi vem de trás!"
A "luz negra de um destino cruel", como em Nelson Cavaquinho, digo eu. "É isso, boa, Goeldi é isso! Já Guignard conversa com Cézanne. O Volpi, olha ali, (travelling para Volpi, bandeiras azuis e brancas), conversando com o Malevitch." Maior cruzamento do suprematismo com festa do interior, penso.
É neste casamento cada vez maior entre a representação e a forma que vemos chegar os anos 50. Nuno: "Veja estes dois Milton DaCosta, de 1954. Parece uma junção de Mondrian com Morandi. Se o Brasil der certo um dia, vai ser com a união desses dois!"
Agora estamos indo em direção a outro passado. Estamos no Brasil de JK, com a abstração predominando, a coisa plástica crescendo de "otimismo", uma crença na racionalidade, no planejamento, me diz o catálogo da exposição.
"Mas a grande arte sempre foge além dos períodos", me diz Nuno. "Veja este Amilcar de Castro, (uma grande placa de ferro enferrujado lascado no chão) veja. Claro que aqui há um eco de Max Bill, mas Max Bill é parado, ele achava que o mundo andava porque o Parlamento se reunia; aqui não; veja Amilcar, veja a resistência do ferro, a memória do ferro, a chapa grossa e inadequada, veja o drama aqui no ferro; há o tempo, há Minas Gerais e não Suíça!".
Andamos mais. Surgem os concretos juscelinistas. "Vera Sérgio Camargo; que maravilha, ele tem um vocabulário internacionalizante mas pervertido. Ele é uma soma de Brancusi com Arp, me disse Ronaldo Brito. Ver Sérgio como 'op', seria uma leitura pobre. Veja Iberê, as tempestades de Turner virando pântanos geniais. "Tantas coisas passam a nosso lado, e a sensação que se tem, à medida que as imagens se aproximam dos anos 60, é de que há uma aceleração no travelling.
"Que é isso, Nuno?" pergunto eu, "que 'aceleração' é esta, que começa aqui em Amilcar de Castro e que, depois do sonho racional dos concretos, vai aportar em Hélio Oiticica?" "É, tem razão; é um sentimento de 'urgência', não sei, há uma 'urgência' crescente em Hélio; acho que a grande importância dele é essa: ele pega a mais radical tradição da arte do século, ele pega os russos e o dadá e acaba com os alumínios e cria os 'bólidos' de caixote colorido. Esta urgência a gente deve a ele, esta 'carnavalização sóbrida'. Hélio tinha uma vocação de achar que depois dele (e Lygia Clark) o suporte tem de ser não-pictórico, que um seria mais moderno que o outro. Os suportes são sempre históricos e não há suporte ideal. Pode-se voltar à tela tranquilamente".
As grandes cores de Jorge Guinle se aproximam de nós. "Veja que lindos estes Iberês alegres, estes De Koonnings cariocas; tela, tinta e não estão presos nem à moldura nem ao passado. Nem Hélio nem ninguém dá a 'linha justa'. O genial é este descentramento que vemos aqui, esta oscilação."
Nesta oscilação, vemos o Brasil, passamos por todos, e vemos passar o pop brasileiro, a raiva política de Vergara, Gerchman, a metafísica paródica de Antonio Dias, depois do golpe de 64. Vemos depois o conceitualismo dos anos 70, Cildo Meireles, Waltércio Caldas, e chegamos na grande instalação de Nuno Ramos, agora, no fim da exposição, com os "111 mortos do Carandiru".
Esbarramos com o país de hoje. A impressão é fortíssima. Estamos dentro de uma obra como se tivéssemos entrado na cena de um crime. Num espaço vazio, 111 paralelepípedos, untados de breu, três múmias imensas (ou arcabouços de um navio sem mar?). Uma múmia de barro, outra de ouro e outra de carvão, sob uma cruz derretendo no ar, entre pulmões de vidro que exalam nuvens rasteiras, a instalação "111" é um desses momentos em que a arte parece tocar um "real" impossível. Parece que algo vai acontecer, há um grande suspense dramático no ar como um teatro vazio, onde os atores morreram e só ficou a cenografia.
Vale a ida à Bienal para ver este crime representado. Mesmo sem saber de Carandiru, o impacto seria o mesmo. Começa como alegoria e resulta como misteriosa poesia fúnebre. Olho. Ali está também presente Joseph Beuys, mas ali está também Goeldi, espreitando nos contraluzes negros. "Havia o perigo da demagogia", diz Nuno. "Mas o fato me deu uma semântica. O massacre me levou a isto e não isto a Carandiru."
Inverte-se aqui a arte política. A violência criando uma forma. "Quando Oiticica fez a 'Homenagem a Cara-de-Cavalo', havia uma identidade para o marginal morto. Hoje, há o anonimato. Há a morte oficial. Ninguém vai preso, foda-se". Eu falo no barroco trágico da obra contra um ascetismo dos conceituais e ele me dá um toque: "Nada... Sérgio Camargo é ascético, mas o pensamento dele não é. Na grande arte, estas oposições se dissolvem." E eu fico vendo a instalação de Nuno Ramos, artista jovem do Butantã, vergado pelo desejo impalpável da arte.
Ele continua: "Aqui eu acho que eu retomo a urgência, de um novo ângulo. Nos outros havia potência. Aqui há retração. Aqui há um coma. Antes, mesmo em Hélio e nos pops, sempre havia a esperança de que a barra não pesasse. Aqui, a barra já pesou. Não há esperança mais; a dívida social é muito alta. Não há como pagar. Sinto falta de que na cisa brasileira alguém diga que não tem volta. A esperança é hoje um troço meio de direita, mas temos de trabalhar com ela, sem sermos babacas. Acho que a situação de quem quer mudar o mundo é meio difícil, ainda mais pela arte. A gente tem de acusar o golpe também. Mas eu não acredito nem no cinismo de mercado nem na melancolia dos museus."

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