São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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O mundo estático da Belle Époque nacional

Arte acadêmica virou sintoma aberrante da história

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Oficial, acadêmica, clássica, romântica, realista, tradicional, como quer que seja chamada, a arte de Belle Époque brasileira acabou como o ídolo expulso do templo com a mudança do culto. E, culto por culto, como se sabe é a própria justificação de cada um que cria a sua legitimidade. Cria ademais, como é de se esperar, os seus demônios também, sem os quais nenhum está completo.
Assim, por paradoxal que pareça, essa arte ostensivamente conservadora se encontra hoje numa posição especial para suscitar questões deveras sugestivas. Encurralada num nicho perdido do tempo, ela parece se apresentar como o sintoma mais aberrante de uma era equivocada. Afinal, o que foi a Belle Époque senão a grande festa para a celebração da vitória do progresso e da cooperação cordial das nações, que teve porém a má sorte de culminar na Primeira Gerra Mundial, sob a mais estarrecida carnificina tecnológica?
A seção dedicada à arte do período entre o final do século 19 e o contexto ao redor da Grande Guerra na exposição "Bienal Brasil", oferece uma boa oportunidade para observar e refletir sobre a produção desse momento relegado. Pode a criação cultural de todo um período estar equivocada? Pode uma sociedade estar fora da história, ainda que por um momento? E, mais curioso ainda, pode uma comunidade artística viver e produzir à margem do processo de transformações da história da arte?
Se a resposta a essas três questões for sim, então nada impede que isso possa acontecer mais de uma vez. Se a resposta for não, então em nome do que esse período e essas obras são renegadas? Como quer que seja, a presença algo incômoda desse acervo é a única resposta que temos para essas questões. Ele poderia, é claro, ser jogado na lata de lixo da história. Mas correria o risco de levar a nossa boa consciência para o depósito de entulho.
As mudanças históricas desse momento no Brasil são as mais dramáticas. Nele se enquadram as grandes ondas de imigração estrangeira, a abolição do trabalho escravo, o "boom" das economias de exportação do café, da borracha e do cacau, a instauração do regime republicano, as lutas intestinas dentre as forças armadas, a revolução federalista no Sul, as revoltas polupares de Canudos, do Contestado e da Vacina, a metropolização das capitais e o desenvolviento da industrialização, para só falar de processos de grande impacto.
Isso tudo era decorrência das pressões para sintonizar o país com as condições geradas pela Revolução Científico-Tecnológica, desencadeada na Europa e nos Estados Unidos e rapidemente difundidas por todo o globo. Uma nova camada social de arrivistas depõe a elite imperial, assumindo o comando do país. Esses plutocratas herdaram a tradição da arte acadêmica, que não fora criada por eles, e tentaram adaptá-la para seus fins. Mas ela já trazia um jeito, aspecto e cheiro de roupa usada que era difícil disfarçar.
Ela tinha lá suas vantagens, porém. Por exemplo, era cosmopolita. Uma obra belíssima como "A Maternidade" (19606), de Eliseu Visconti, o primeiro artista premiado pela recém-empossada elite republicana, tanto podia estar representando uma cena que transcorria no Passeio Público do Rio de Janeiro, como no Bois de Boulogne em Paris. Não ficaria má em nenhuma galeria, nem na sala de ninguém, aqui ou lá.
A tela, um primor de composição e de técnica, exibe no primeiro plano uma senhora burguesa vestida em grande estilo, amamentando seu filho, do sexo masculino, nu da cintura para baixo, com as perninhas abertas e voltadas para o observador, num amplo jardim público decorado com estátuas clássicas, sob o sol pálido da tarde.
A imagem é pois de uma eloquência gritante e de um requinte atmosférico altamente simbólico. Mais do que alegorias das Madeleines republicanas, que proliferam nesse momento, saudando os novos poderosos com sua indefectível espada e barrete frígio, essa imagem define o padrão de dignidade que se estava inaugurando.
A presente exposição no Pavilhão da Bienal traz uma seleção bem variada das possibilidades expressivas desse padrão, assinalando sua complexa sintaxe técnica, que exigia um longo e dedicado treinamento na Escola Nacional de Belas Artes e no exterior, além da sua riqueza de temas, motivos, tratamentos, referências e projeções. Alguns dos trabalhos são de alto valor artístico, revelando todo o poder de comunicação e sedução dessa linguagem estética.
Destacaria como particularmente notáveis "Duas Raças", de Alfredo Andersen; "Desenho Erótico", de Alvim Correa; "Dolorida", de Antonio Parreiras; "Adolescente", de Belmiro de Almeida; "Painel Decorativo", de Guttmann Bicho; "O Despertar de Ícaro", de Lucílio de Albuquerque; "Cena de Café", de Rodolfo Amoedo e o "Panorama do Descobrimento do Brasil", de Victor Meirelles, para só citar alguns a partir do catálogo.
Visconti é um mestre. Seus estudos para a decoração do "foyer" e do "plafond" do Teatro Municipal do Rio são epítomes das potencialidades composicionais e expressivas do repertório acadêmico.
Mas alguma coisa não funcionava bem. Pode-se ter uma idéia do que não funcionava bem observando uma das telas mais admiráveis dessa seção, a "Rua 1.º de Março", de Gustavo Dall'Ara. O quadro é de 1907 e não é de pouca relevância lembrar que foi nesse ano, precisamente, que Picasso criou a linguagem cubista, chave de toda a transformação radical das artes visuais no século 20.
Dall'Ara representa a tal rua na sua movimentação típica de um fim de tarde. A escolha não é casual, pois essa está hoje longe de ser uma rua qualquer. Ela fica ao sopé do Morro do Castelo, que se descortina elegante em "sfumatto" na sua perspectiva, com o casario bem composto cascateando na direção da rua em tons pálidos sob a luz oblíquia da tarde.
No primeiro plano se destaca o imponente conjunto arquitetônico que reunia o convento do Carmo e a Capela Imperial, com suas fachadas sólidas, maciças, de um impávido rigor senhorial. Os pedestres que apequenados circulam diante dessa paisagem e desses edifícios são senhoras, cavalheiros e casais trajados segundo a mais distinta compostura burguesa, entremeados de alguns cães, vendedores ambulantes, empregados do comércio, uma carroça, uma caleça e uma charrete mais ao fundo.
A cena toda, pois, evoca tradição, respeito, trabalho, ordem e as virtualidades tranquilizadoras a serem hauridas de um tempo e espaço sob rigoroso controle.
Há algo entretanto que a cena não mostra. A um quarteirão dali, três anos antes, em 1904, havia sido aberta a avenida Central, base do projeto de reurbanização, da cidade do Rio, uma via ampla, com várias pistas nos dois sentidos, fluxo rápido e maciço de trânsito, motocicletas, automóveis, furgões e caminhões pesados, massas de transeuntes nas calçadas, iluminação intensa, vitrinas, cartazes, "flâneurs", flertes, especuladores, cambistas, punguistas, golpistas e polícia aos montes.
A única alusão ao mundo volátil das novas fontes de energia e dos fluxos de massa na imagem da rua 1.º de março era o traçado discreto e linear de dois pares de trilhos no pavimento, sem que se visse qualquer bonde entretanto. Dall'Ara pode ter tido as mais variadas razões para preferir uma cena à outra. Mas o fato é que o seu código estético baseado na representação de um espaço centralizado, homogêneo, estável e contínuo, se prestava mais ao cenário ao redor da Capela Imperial que ao do trânsito acelerado e dos fluxos dispersivos.
O tipo de público que ele tinha em vista, embora congenial ao novo bulício urbano, provavelmente por isso mesmo preferia imagens capazes de assegurar uma solidez que aquele bulício fez ruir.
Mas por que então Dall'Ara ou Visconti ou Parreiras, ou quem fosse, não tensionavam o seu código estético para incorporar as vicissitudes desestabilizadoras introduzidas pelos novos equipamentos, pelo novo estilo de vida, pela realidade social e econômica?
A falta de estímulo de seus patronos, o Estado e os plutocratas é uma razão forte mas por certo não exclusiva ou decisiva. Também na Europa e Estados Unidos foi um conluio de minorias artísticas e sociais que promoveu a transformação nas artes.
A causa parece mais ampla e mais grave. Nos centros dinâmicos da economia internacional, a arte interagia como um elemento intrínseco da transformação científico-tecnológico. Os impressionistas se nutriam das pesquisas em física, ótica e fisiologia retiniana, assim como suscitavam novas questões através das suas próprias explorações.
Monet e Renoir, quando partiram para suas experiências conjuntas em Bougival, de que nasceria o Impressionismo, levavam na bagagem tratados de Chavreul, Blanc, Maxwell, Rood e Helmholz. Seu amigo Cézanne, com quem às vezes também pintavam juntos, sondava as propriedades diagramáticas da representação, chave do novo espírito científico.
Enfim no contexto europeu, a arte constituía parte do problema de construir um mundo e uma experiência sob um novo estatuto dos conhecimentos. No Brasil, tudo de que os artistas podiam dispor era um enorme repertório de soluções.

NICOLAU SEVCENKO é professor de história da USP e autor do livro "Orfeu Extático na Metrópole - São Paulo, Sociedade e Cultura nos frementes Anos 20" (Companhia das Letras)

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