São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Albert Camus foi o James Dean da literatura

Camus, autor de "O Primeiro Homem"

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DO MAIS!

Um livro inédito de Albert Camus, "O Primeiro Homem", é desenterrado na França e, de imediato, vira best-seller.
A França clama por Camus, diz a "Newsweek". Camus, morto em 1960 num desastre de automóvel, é o novo hype da mídia.
As revistas estampam Camus e seu rosto oval, a pele sombreada pelo sol argelino (ele nasceu em 1913 na Argélia), o vigor do ex-jogador de futebol (que ele foi) equilibrando em uma medida insondável a melancolia e a tensão de um "estrangeiro no mundo"...
Um "physique-de-rôle" muito adequado ao filme existencialista que se desenrola nos anos 50, onde ele divide a cena com o Quasímodo que era Jean-Paul Sartre.
Nesse filme, Camus (Nobel de Literatura em 1957) é uma espécie de James Dean, morto também em desastre de carro em 1955.
Seu pensamento é um estertor da filosofia do sujeito na França, assim como o Actor's Studio (escola de interpretação que formou Dean e Brando) é um paroxismo do tratamento psicológico do personagem. Sua máxima, "Eu me revolto, logo existimos", é puro pensamento transviado.
Camus, que foi também ator e diretor de teatro, dificilmente esqueceria a metáfora do palco. E a sua pergunta é: onde colocar hoje o homem na cena do mundo, este mundo esvaziado de sentido?
Assim ele sintetiza sua tese do absurdo: "Esse divórcio entre o homem e a sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é verdadeiramente o sentimento do absurdo" (em "O Mito de Sísifo").
A cena do mundo é crivada de tragédias, mas não é propriamente trágica: "Se a época fosse apenas trágica! Mas é também imunda. Por isso deve ser acusada –e perdoada" (em "Primeiros Cadernos").
O absurdo e a revolta são alavancas para um "novo trágico", à medida do homem contemporâneo (daí os mitos: Sísifo, Prometeu...).
Ele narra: "Cita-se muitas vezes, para rir, Schopenhauer, que fazia o elogio do suicídio diante de uma mesa bem guarnecida. O que não deve, entretanto, constituir motivo de chacota. Essa maneira de não tomar o trágico a sério não é assim tão grave, mas acaba por nos dar ela própria a medida do homem" ("O Mito de Sísifo").
Humanista e moralista (na melhor linhagem francesa) mas num mundo em frangalhos, Camus não pode aceitar seu personagem em uma cena beckettiana, esperando Godot num fim-de-jogo.
Sua cena é sempre "exemplar": o sentimento do Absurdo da existência não mergulha o indivíduo na sua negação, mas o situa de novo no mundo. É deste sentimento mesmo que nasce a Revolta, valor mínimo (que pode irradiar-se como Peste) a partir do qual renascerá a solidariedade humana.
Camus quer salvar o homem: toda a sua obra é a "reivindicação de uma ordem humana em que todas as respostas sejam humanas, isto é: racionalmente formuladas".
Razão, a essa altura, que não passa de um sentimento, uma nostalgia da Razão, fazendo a obra toda de Camus hesitar entre niilismo e afirmação, tragédia e patético, modernidade e classicismo, engajamento e liberdade, indivíduo e história, fantasia e filosofia.
O indivíduo de Camus é um morto-vivo do humanismo. Seu Estrangeiro é o último personagem romântico. A filosofia e a literatura posteriores selariam sua catástrofe.
O carro de Camus chocando-se em uma árvore à beira da estrada é pura imagem do derradeiro "weekend" do racionalismo francês.
Depois de tudo isso, só há dois modos de ressuscitar Camus: pela mídia ou pela paixão.

Texto Anterior: Corrente filosófica completa 50 anos
Próximo Texto: Conheça o escritor francês
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.