São Paulo, sábado, 28 de maio de 1994
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Um homem se arrasta

ALBERTO HELENA JR.

Romário arrastava-se pelo suave gramado do campo de treinamento da Universidade de Santa Clara, na luminosa manhã de ontem.
Aqui, o verão se insinua no sol que se estende para além da hora do crepúsculo. Mas o inverno reluta em se despedir, e fica presente em um ventinho frio que varre o dia todo a região de Santa Clara, San Jose e Los Gatos, o triângulo que protege nossa seleção dos maus eflúvios.
As arquibancadas do pequeno e velho estádio universitário abrigam algumas centenas de entusiasmados torcedores, quase todos brasileiros, que moram por aqui ou já vieram daí, antecipando-se à Copa. Só que Romário se arrasta em um campinho ao lado, onde o preparador físico Moracy Sant'Anna comanda o espetáculo.
Na véspera, dia da chegada dos nossos craques, a festa era bem maior: as arquibancadas estavam praticamente lotadas, e os torcedores muito mais entusiasmados. Um deles, ao ver Romário pisar o gramado, não resistiu e berrou, num inequívoco sotaque de Governador Valadares. "Romário! Ocê fala muito, más joga muito!"
Lapidar definição para a maior estrela da nossa seleção, que, nesta manhã se arrasta em campo.
Há nessa relação, entre a torcida e o craque, um vestígio da velha cultura do malandro, que permeou nosso futebol dos anos 30 aos 60.
O craque, antes de tudo, era um artista. Boêmio, irrequieto, avesso à disciplina que só servia para tolher sua criatividade. Pouco importava se ele seguia as regras ou não, desde que na hora do jogo empolgasse a galera com seus dribles, passes de trivela, lançamentos geniais e gols inesquecíveis.
Desbocado, o craque vivia criando problemas com os cartolas e municiando a imprensa ávida por escândalos com frases de efeitos tão devastadores como suas fintas e chutes a gol no campo de jogo.
Zizinho, como diria Caetano, foi sua mais perfeita tradução, naqueles tempos. Jogador completo, unia em campo, raça, inteligência e habilidade. Acabado o jogo, tomava banho, perfumava-se, metia a camisa de seda, o terno impecável, sapatos rebrilhando e descia para o saguão do hotel. Sentava-se à poltrona, enfiava o cigarro na piteira, acendia-o e só então dignava-se a dar uma olhada circular.
Atenta, a platéia, formada pelos demais jogadores do time, só esperava a palavra de ordem do mestre, que apenas indicava qual a boate escolhida para a noite.
Claro que esse Romário, que se arrasta em campo, aqui em Santa Clara, não exerce sobre os demais companheiros o fascínio de Mestre Ziza. Tampouco, a concentração do time nacional vive tais liberalidades. Nem sei se Romário vai a boate, se é que ainda exista isso nos nossos tempos. Aliás, desde Pelé, o mais completo de todos, aquele que bateu todos os recordes e que conseguia ser craque no campo e disciplinado fora dele, desde então, esses hábitos começaram a cair em desuso.
Por isso, o Romário que se arrasta em campo, daqui uns dias estará dando piques. E quando a Copa chegar, tinindo para fazer os gols que ficarão na nossa memória.

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