São Paulo, sábado, 28 de maio de 1994
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Bronzes e cristais

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Morava na rua Bom Pastor, na Tijuca, era vizinho de minha prima Ádila, muito magro e humilde. Todas as rádios tocavam "Canta Brasil" e muita gente pensava que Ary Barroso havia repetido a dose. Destino estranho, o de grandes artistas que dão o azar de serem contemporâneos de outros grandes artistas. Alcyr Pires Vermelho, que morreu na quarta-feira, foi um inventor de melodias, dos maiores de nossa música –e Villa-Lobos admitia isso.
Foi, também, um inovador de harmonias, um precursor dos muitos macetes que a Bossa Nova, anos mais tarde, tornaria populares e chatos. Curiosamente, foi um pianista quadrado, sem a fabulosa mão esquerda de Ary e sem o brilho chopiniano de Nazareth.
É admitido na crítica cinematográfica que Ronald Reagan deu azar em ser contemporâneo de John Wayne. Scott Fitzgerald trombou com dois gigantes (Faulkner e Hemingway), Perugino poderia ter sido um dos pais da Renascença se não esbarrasse em Rafael e Michelangelo.
Alcyr Pires Vermelho produziu o melhor de sua obra quando Ary fazia de tudo no rádio, desde programas de auditório à invenção da gaita nas transmissões esportivas. Eram amigos, certo, e até parceiros ("Casta Suzana" foi sucesso num Carnaval), mas depois de "Canta Brasil" os dois se estranharam.
Ary tinha gênio difícil. David Nasser, parceiro de Alcyr, havia prometido que garantiria a barra com Ary, chegara a citá-lo na letra que dera para Alcyr musicar –primeira citação de um samba dentro de outro. Ary não quis saber de panos quentes. Faltou a Alcyr um Walt Disney que levasse a sua música para o mundo. Mesmo assim, Alcyr continuou gostando do Ary. Estudara piano com tia Ritinha, que era tia só do Ary.
Foi em "Bronzes e Cristais", na voz angustiada de Mayza, que Alcyr criou uma nova bossa de harmonizar. Ary ficou como um bronze, Alcyr foi um cristal. Com ele, desaparece um dos grandes de nossa música. Um homem magro, que andava de bonde e morava numa rua com o nome de Bom Pastor.

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