São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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O Estado está nu

O segundo caderno da série Brasil 95, que a Folha publica hoje, revela as propostas dos candidatos presidenciais no campo da privatização e do saneamento das instituições financeiras estatais. Com exceção do PT de Luiz Inácio Lula da Silva e do PDT de Leonel Brizola, os outros candidatos incorporaram a privatização às suas agendas.
Há quem creia na desestatização como se acredita numa ideologia. De fato, a privatização como bandeira política ganhou o imaginário mundial ao longo dos anos 80, período de disputa ideológica acirrada. Naqueles anos, Margaret Thatcher fez da desregulamentação e da privatização instrumentos centrais de transformação da economia britânica. Surgia o neoliberalismo.
O auge desse movimento acabou coincidindo com o fim da própria Guerra Fria. De questão ideológica, a reforma do Estado passou a questão eminentemente pragmática.
Mais fortes que hipóteses teóricas ou tergiversações ideológicas, falou mais alto o puro e simples desmoronamento da "cortina de ferro". Revelaram-se, no ocaso das economias estatizadas do Leste Europeu, enormes dificuldades no caminho de quem teve de procurar ao mesmo tempo a democracia e as bases de novas economias de mercado.
Desde então, em todo o mundo a reforma do Estado, a privatização, a quebra de monopólios e a desregulamentação têm representado desafios econômicos, tecnológicos, políticos e financeiros bastante complexos. As mais variadas soluções têm sido tentadas, sempre na direção de revigorar o mercado, da pulverização de ações à participação acionária dos trabalhadores, passando pela internacionalização de setores tidos por estratégicos (como energia e comunicações).
Mas no Brasil, justamente onde a crise fiscal, a ineficiência, a corrupção e o corporativismo alcançaram graus comparáveis aos que vigiam nas antigas economias socialistas, a questão do Estado ainda permanece fundamentalmente ideológica. A ponto de o mesmo governo que até se declara favorável à reforma do Estado patinar, continuamente, no imobilismo e na procrastinação.
O resultado é, mais uma vez, a transformação do contribuinte em vítima e do usuário em refém.
Quando se disse "o rei está nu", começou o mundo moderno. O desafio central da modernidade foi justamente preencher o espaço de poder onde antes se instalava, em nome de uma concessão supostamente divina, o rei. Agora, ao final de um século em que muitos tentaram torná-lo um novo "deus ex machina", é o Estado que fica nu.
A dificuldade maior está em perceber os dilemas desse espaço público, de dominação e autoridade, sem confundi-lo com atributos supostamente eternos de um rei, um "Fhrer" ou um tecnocrata que fala em nome da "Revolução". E sem confundir busca ou defesa do bem público com estatização da produção ou hiper-regulamentação.
Houve sempre, e assim será por muito tempo ainda, pressões contra as injustiças e desequilíbrios decorrentes do desenvolvimento econômico ou contra abusos de concentração de renda. Há exemplos notáveis de uso inteligente da máquina estatal e dos poderes públicos nos Tigres Asiáticos e em alguns países europeus. Mas cabe sempre à democracia política expressar inquietações e anseios, encontrando os meios legítimos para repará-los.
Imaginar que o fortalecimento sem peias do Estado, por si só, devidamente "instrumentalizado", trará a superação automática de desajustes e desequilíbrios é tão ingênuo, hoje, quanto acreditar que a benevolência dos reis decidia a sorte dos súditos. O Estado também merece a sua guilhotina.

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