São Paulo, segunda-feira, 6 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Obra-prima de Welles redescobre o Brasil

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Filme: Tudo é Verdade (It's All True)
Direção: Richard Wilson, Myron Meisel e Bill Krohn, com base no filme inacabado de Orson Welles
Narração: Jeanne Moreau
Quando: pré-estréia amanhã no Espaço Banco Nacional de Cinema (r. Augusta, 1.475, região central)
Convites: a Folha estará distribuindo 120 convites, que podem ser retirados a partir das 9h de amanhã (al. Barão de Limeira, 425)

No início de "Tudo é Verdade (It's All True)", Orson Welles conta, em entrevista à televisão inglesa, como um pai-de-santo espetou uma agulha no roteiro do filme que o diretor americano pretendia realizar sobre as origens do samba, em 1942, no Rio de Janeiro.
Welles nunca conseguiu finalizar seu projeto. "It's All True" se transformou numa lenda entre os títulos perdidos ou abandonados do cineasta ("Dom Quixote", "O Mercador de Veneza" e "O Outro Lado do Vento"), até serem encontradas 309 latas de negativos nos estúdios da Paramount, pouco antes da morte do diretor, em 85.
O filme agora exibido com o título de "Tudo é Verdade" –e dirigido por Richard Wilson, Myron Meisel e Bill Krohn– estreou no Festival de Nova York do ano passado e está dividido em duas partes: um documentário sobre as filmagens (as circunstâncias do projeto) e as imagens realizadas pelo próprio Welles, um filme dentro do filme, uma obra-prima desconhecida até recentemente.
Em 1942, por iniciativa de Nelson Rockfeller e do governo americano, o jovem Orson Welles (tinha 28 anos e acabava de dirigir "Cidadão Kane") é enviado ao Brasil com o objetivo de realizar um filme sobre aspectos da realidade brasileira.
O filme fazia parte de um projeto maior de intercâmbio cultural entre os EUA e a América Latina (um dos episódios, "My Friend Bonito", estava sendo filmado no México), que se inseria na "política de boa vizinhança" do presidente Franklin Delano Roosevelt, preocupado em trazer o continente (e, em especial, Getúlio Vargas) para o lado dos aliados.
Welles chega ao Rio com o objetivo de filmar o Carnaval em Technicolor mas ainda sem uma idéia precisa na cabeça. Vai se interessar pelas origens do samba, pelo contexto social, e decidir fazer sua genealogia, desde os ritos africanos.
Pressões
O ponto de vista social de Welles não agrada aos patrões da RKO (o estúdio por trás do projeto). Com a demissão do presidente da companhia, a situação torna-se ainda mais difícil para o diretor, que começa a sofrer todo tipo de pressões.
É obrigado, por exemplo, a dar as indicações de montagem de seu segundo filme, "Soberba" ("The Magnificent Ambersons"), por telex e telefone, além de ver seu orçamento brasileiro progressivamente reduzido.
É nesse momento que Welles é obrigado a dizer ao pai-de-santo que não poderá finalizar o episódio sobre as origens do samba, por falta de dinheiro, e este, em represália, espeta a agulha fatídica no roteiro.
O tempo contribui com uma boa dose de glamour para a anedota e o cineasta já pode contar a história com um certo prazer fetichista quando fala à televisão inglesa sobre o fracasso do projeto. Como se a agulha estivesse na origem do destino verdadeiramente trágico de "It's All True".
Paralelamente ao projeto do samba, o cineasta tinha se fascinado pela história real de quatro jangadeiros de Fortaleza que vieram ao Rio de Janeiro numa jangada sem bússola para reivindicar os direitos sociais prometidos a todos os brasileiros por Getúlio Vargas.
Welles começa a filmar a história pelo fim: reencena, com os personagens reais, a chegada da jangada à baía de Guanabara. Durante a reconstituição da cena, a jangada vira, matando o líder dos jangadeiros, Jacaré, que vinha se transformando numa espécie de emblema social para o país e sobretudo aos olhos do cineasta.
Jacaré
A morte de Jacaré culmina a crise. A RKO reduz a equipe de Welles a quatro pessoas, umas poucas bobinas de filme preto-e-branco e uma única câmera sem som. É com esse material que o cineasta parte para Fortaleza, decidido a filmar, numa vila de pescadores, usando os próprios habitantes como atores, a história dos jangadeiros desde o começo.
O episódio "Quatro Homens numa Jangada", que representa a segunda parte de "It's All True", será considerado por muitos como o precursor do neo-realismo, assim como o elo perdido entre Eisenstein, Murnau e Glauber Rocha. Uma espécie de cruzamento entre "Que Viva Mexico", "Tabu" e "Barravento".
O trabalho de pesquisa e reconstituição de Richard Wilson (que fazia parte da equipe de "It's All True" em 1942), Myron Meisel e Bill Krohn é memorável. Mas o mais impressionante é a dramaticidade das imagens conseguidas por Welles com os recursos mais parcos e adversos.
Todo o filme gira em torno de uma única idéia representada pela solidariedade da comunidade de pescadores e o heroísmo dos quatro jangadeiros: de que o homem é viável. Uma imagem que, embora se opondo à tragédia mais evidente de um "Cidadão Kane", não perde de vista em momento algum a perspectiva trágica na base do destino desse homem.
Mais que essa idéia, o espantoso do filme é o sentido que Welles dá à verdade. A verdade, para o cineasta, é a própria arte. Tudo o que for filmado. Porque tudo é encenação, reencenação, em "Tudo é Verdade".

Texto Anterior: Soprano brasileira triunfa em montagem vienense de Hindemith
Próximo Texto: Denise Stoklos mostra Nina Simone cantando
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.