São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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Borodin põe a técnica a serviço da razão

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Técnica e emoção não se misturam e não são, necessariamente, uma derivada da outra.
Parece ter sido sobretudo esta a lição deixada, em São Paulo, pelos instrumentistas russos do Quarteto Borodin.
Segunda-feira, na primeira de suas duas apresentações, forneceram uma leitura bem mais clássica que romântica de Beethoven.
Em "A Morte e a Donzela", o maravilhosamente estruturado "Quarteto nº 14", de Schubert, a astúcia para escapar ao emocionalismo consistiu em dar à cadência um ritmo bem apressado.
Os músicos driblaram o convencionalismo que vê nessa peça o exemplo de romantismo destilado.
No segundo movimento, os violinos enfatizaram a separação dos sons por meio da suspensão dos arcos pelas frações de segundos capazes de fraturar a percepção de unidade das arcadas.
Nenhuma excentricidade ou incorreção nessa forma de leitura. Mas seu efeito é deliciosamente racional. O ouvinte é colocado diante da estrutura musical e não é imediatamente arrastado em direção aos efeitos que a música pode porventura produzir.
As duas peças de Beethoven no programa -o "Quarteto nº 11, op. 95" e o "Quarteto nº 4, op. 18"- têm movimentos em que a melodia flui por esboços de fugas.
Foi o pretexto aproveitado pelos instrumentistas para também aumentarem a cadência e recuarem no tempo o parâmetro de leitura.
O clima de tecnicidade predominante era também dado pela frieza com que a virtuosidade era exercida por cada instrumento.
O quarteto é taciturno. Não sorri e respira sem que nenhum envolvimento seja vizível, a não ser o da mão esquerda nas cordas e da mão direita no arco.
É talvez uma herança adquirida nos anos em que o conjunto se produzia no Ocidente como representante do que havia de mais refinado na então União Soviética.
Há a preservação de uma cultura interna em que o artista é o instrumento do instrumento musical.
Essa maneira rara da construção de empatias foi mantida mesmo na peça executada como bis.
Tratava-se de Chostakovich, um contemporâneo desta vez histriônico, executado pelo beliscar das cordas ou com dissonâncias circenses. Engraçado? Nem tanto. Foi técnica e mais técnica.

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