São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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'Enciclopédia' congela repertório clássico

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Título: Classikon The New Library of Classical Music
Compositores: Bach, Beethoven, Mozart, Brahms, Debussy, Stravinsky e outrosFormato: caixa com 25 CDs importados
Gravadora: Polygram/Deutsche Grammophon

Nesses últimos anos, a questão do cânone –da formação de um repertório– tem sido extensamente discutida, em áreas que vão da musicologia à crítica literária, da historiografia à filosofia e aos estudos da mulher.
"Ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos", escrevia Italo Calvino em 1981; mas não são poucos os que contestariam, hoje, essa afirmação. O que é um clássico, afinal? Ou melhor, quando e por que uma obra vira um clássico?
As respostas variam, mas via de regra se enquadram em duas categorias. De um lado, há os que defendem a construção interna do cânone: dessa perspectiva, são as próprias obras que vão formando constelações e construindo, assim, a tradição. Cada obra quer sempre criar espaço para si mesma no território superpovoado das outras obras já existentes.
O advento de uma nova obra, forte o bastante para conquistar este espaço, não só engendra uma nova rede de relações como modifica a relação entre as outras. É a posição de um poeta modernista como T.S. Eliot, ou de um crítico contemporâneo, como Harold Bloom.
Para um observador de fora, este problema pode parecer meramente acadêmico. Mas é impossível menosprezar a influência das discussões sobre o cânone para as mudanças em curso na criação e divulgação, e especialmente na pedagogia cultural.
O mínimo que se pode dizer é que as batalhas pelo cânone estão nos levando a identificar a natureza desse legado adquirido de idéias e obras, e sugerindo, inclusive, outras formas de apreciar os clássicos. Ler os clássicos pode ser mesmo melhor do que não lê-los, mas isto depende, hoje como sempre, de como e por quê vão ser lidos. A contestação de uma hierarquia cultural sempre é saudável, mesmo quando, no final das contas, essa hierarquia acaba se confirmando.
Na literatura é precisamente isto o que se observa: a guerra do repertório vem servindo tanto para alargar os limites do que se lê quanto para revitalizar nossas respostas amortecidas às grandes obras.
Na música, contudo, ou pelo menos na indústria comercial da música de concerto, as resistências são muito maiores. Nem a música antiga, nem muito menos a contemporânea têm sido capazes de deslocar o centro de equilíbrio do repertório, que permanece firmemente estabelecido nos séculos 18 e 19.
Noventa por cento do que se escuta nas salas de concerto ou no rádio é a música de cem a duzentos anos atrás, uma situação sem paralelo em nenhum outro período da história. Ao contrário do que é a norma com as artes visuais ou a literatura, nós convivemos diariamente com a música de um passado remoto e raramente sabemos sequer o nome de um compositor atual.
"Mas quem disse que a Bíblia acabou?", perguntava o poeta romântico Novalis, e a mesma pergunta poderia ser feita hoje com relação ao cânone da música.
Não há razão para se congelar o repertório. Em tese, ao menos, ele poderia sempre continuar crescendo, tanto para a frente, quanto para trás (música antiga) e para os lados (compositores esquecidos, música de outras culturas).
Não é isto, no entanto, o que se observa cotidianamente e não é o que acontece com a "Nova Biblioteca de Música Clássica", em cem CDs, que a Deutsche Grammophon acaba de lançar. O projeto é ambicioso; construir uma enciclopédia da música, nos moldes de grandes coleções como os "Grandes Livros" da Enciclopédia Britânica, ou os museus universais em CD-ROM.
Desde meados do século passado, a música de concerto pertence ao que chamamos de alta cultura, e conhecer música faz parte do nosso projeto de educação. Mesmo num país de analfabetismo musical tão elevado como o Brasil (quem de nós sabe ler uma partitura?), a noção de que é importante se conhecer os grandes compositores não é objeto de disputa.
A nova enciclopédia musical, nesse contexto, pareceria um bom remédio, ou paliativo para quem quiser se educar musicalmente.
Face aos primeiros 25 CDs da "Nova Biblioteca", a reação de um crítico fica entre a euforia e o desencanto; euforia pela magnitude da coleção e pela expectatica antecipada de tantas grandes obras por reencontrar; desencanto, porque um projeto como esse, hoje, poderia sem dúvida ser bem mais instigante, e propor uma seleção menos automática do repertório.
Entre os cem discos anunciados, há alguns desequilíbrios francamente comerciais, como dedicar nada menos que cinco CDs a Tchaikovsky e apenas um à música da Renascença inteira, ou dois discos cada para Dvorak e Sibelius e nem um aceno sequer a um mestre estabelecido do século 20 como Messiaen.
Claramente a intenção do projeto é satisfazer o gosto mais convencional. Exceções como Bartók ou Ives aparecem como exceções mesmo, relativamente bem aceitas. É possível criticar essa postura tão convencional, mas ninguém poderia, em boa consciência, varrer Schumann ou Brahms do repertório, ou negar a si mesmo as lições e as glórias de Bach, Mozart, ou Beethoven.
A "Biblioteca", então, não é nem nova (e as gravações, aliás, são todas reeditadas), nem verdadeiramente enciclopédica. Mas é uma coleção esplêndida de obras daquele repertório que é o nosso repertório central, com todas as suas características e limitações. Sem nenhum falso humanismo, ainda é possível dizer que essa música tem sua sobrevivência garantida.
Como diria Calvino, "quando mais ouvidas e reouvidas, essas obras nos cativam ao primeiro compasso –e elas não se exaurem jamais", entre outros motivos, porque se altera a nossa forma de escutar.
Uma centena de discos como esses devem ser capazes de transformar qualquer um de nós num bom ouvinte. E o bom ouvinte saberá, depois, encontrar sua música sozinho, livre da enciclopédia e da boa educação.

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