São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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Disque-erótico está além do bem e do mal

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 09/06/94

Diferentemente do que informa a legenda da foto deste artigo, o serviço telefônico não foi desativado na semana passada. A Telesp apenas anunciou sua desativação na semana passada. A foto mostra apenas uma atendente do serviço, também diferentemente do que a legenda informa. Por problemas técnicos, o antepenúltimo parágrafo saiu truncado. O correto seria: "E é claro que muita gente não ligou para o tele-sexo e termina tendo de pagar. Mas é claro, também, que muita gente ligou e diz não ter ligado". Disque-erótico está além do bem e do mal
ATelesp resolveu acabar com os serviços de conversa erótica pelo telefone. Foi admitido o papel de grupos moralistas nessa decisão. Muita gente reclamava do disque-erótico e mesmo dos anúncios que o divulgavam na TV.
"Ligue para mim", diz uma voz de gata em "off", enquanto na tela uma contorção de pele e sedas se faz a meia-luz. Não há pornografia nesses anúncios. Diria que são bonitos. A TV mostra coisas bem mais explícitas e pesadas.
Não é no plano visual que a divulgação do tele-sexo se mostra especialmente chocante. Também os anúncios de motel são pudicos, eufemísticos; alternam-se com a publicidade do "circuito de restaurantes", e nos dois casos o que se exalta é o luxo, o conforto, o requinte do ambiente.
Se há algo de escandaloso nos anúncios de motel ou nos de telefonia erótica não é aquilo que prometem, aquilo que mostram. O que atinge a consciência moralista é outra coisa. Trata-se de dizer, apenas, que a tentação, o pecado estão ao alcance de todos. Estão mais perto do que se pensa.
Logo ali, na Marginal Pinheiros. Logo aqui, no telefone. É só discar. Isso perturba o moralista, que se julga afastado do mal. Perturba ainda mais, porque o serviço não se apresenta como mal nenhum: no motel X há uma excelente cozinha e uma ótima sauna.
Um cartaz de propaganda exalta o sexo telefônico de modo particularmente esperto. Diz: "Você precisa de uma massagem no ego". Desconte-se a possível malícia da frase, a alusão subliminar a práticas masturbatórias. O importante é que o cartaz fixa a idéia de que, telefonando para a moça, você não estará atendendo a uma baixa vontade corporal, mas a uma necessidade psicológica legítima.
Entramos no problema básico dessas conversas. O psicanalista Tony Anatrella, em seu livro "O Sexo Esquecido" (ed. Campus), fala de uma "negação do corpo" no imaginário contemporâneo.
Os franceses, como se sabe, deliram em torno dos serviços do "Minitel rosa", uma espécie de agência de encontros sexuais e fantasias por computador. A telefonia erótica se inscreve nessa órbita de comportamento. Pois o que se institui é o sexo à distância, algo "descorporificado", imerso na pura fantasia, no imaginário.
O que nos leva a outro raciocínio. Até que ponto, e ao contrário do que pensam os moralistas, o disque-erótico não é profundamente moralista? Não há, ao menos, um pudor, um recato, uma timidez bem pouco instintual e desregrada no ato de conversar com uma mulher insinuante, sabendo que nada vai rolar dessa falação?
Quem sabe o fone erótico evita a atividade de estupradores, diminui a procura pela prostituição...
Mas a pornografia não é essencialmente um ato físico, um desempenho corporal. Os amantes mais apaixonados, quando fazem sexo, são iguais aos especialistas da bandalheira. A pornografia é, antes, um ato de linguagem.
O atentado ao pudor é coisa diferente do que o atentado à moral. Atos imorais podem ser feitos da forma mais pudica. A transgressão se refere aos direitos do parceiro, ao respeito humano, à ética. Há outro tipo de transgressão, o que atinge as convenções da linguagem, os limites entre o que pode ser dito e o que não pode.
No caso da telefonia, isso se dá na esfera privada. O rapaz carente liga para a profissional anônima, cujo corpo pode ser feio, mas a voz é insinuante, e ambos se imaginam diferentes do que são.
Não é imoral; é patético. Não é escandaloso; é antes envergonhado. Não é bandalheira; é a metabandalheira, a certeza de que tudo se fará à distância.
Por certo, há dois tipos de serviço erótico. O que proporciona apenas conversas e o que agencia encontros. Duvido um pouco de que esses encontros se realizem. E, se realizam, é uma pura facilidade da vida moderna, e ninguém tem nada a ver com isso, assim como não tem a ver com os olhares derretidos que se trocam em silêncio num barzinho da moda.
Impossível ver imoralidade no disque-erótico. Ou se trata de uma forma particular, pudica, de pornografia sem contato físico, ou se trata de mera facilidade prática, de nova técnica de encontros, tão aceitável quanto qualquer outra.
Ocorre que vivemos em uma época que sucedeu aos tempos heróicos da libertação sexual. As coisas se complicam.
Antes, havia uma distinção clara entre sexo e amor. Entre a infidelidade e o ato conjugal. Entre a respeitabilidade cotidiana e os excessos fora de casa. Depois, decretou-se o fim da hipocrisia. O "tesão" (palavra que antes seria censurada em qualquer jornal respeitável) tornou-se quase como uma justifativa ética.
O encontro dos corpos, a atração física, foi aceita como atividade legítima, independente do amor, capaz de valer por si própria, e seria cretino o sujeito que tomasse uma infidelidade ocasinal como sintoma de que tudo estava perdido num relacionamento.
O puro sexo valorizou-se de tal modo que perdeu seu caráter simples de atração libidinosa. Tanto se exaltou o sexo que uma aura de compromisso sentimental reviveu ao seu redor. O eterno romantismo feminino levou, como sempre, a melhor: "Se ele fez sexo comigo, e fez tão bem, é porque me ama... ele me ama..."
As mulheres se encarregaram dessa ação regressiva, infantil, esperançosa que é a de ligar o sexo ao amor. A pura liberação sexual teria de anular essa ligação, mas isso não aconteceu. Passou-se a tratar o ciúme, a dependência sentimental como qualidades "instintivas" do sexo feminino.
Assim, estamos diante de um feminismo engraçado e romântico. A "natureza feminina" tornou-se pretexto para o conservadorismo amoroso. "Sou mulher, logo quero um marido". O tipo do conformista, burguês, paciente, foi reencontrado pelo feminismo como única salvação diante da histeria dominante. As mulheres se dão mal com a liberdade.
É um direito delas, afinal. Pois quem tem de cuidar dos filhos são elas, e o tipo acomodado surge como um coadjuvante indispensável nesse esquema.
Um dos argumentos que se antepõem ao disque-sexo é o de que, muitas vezes, empresas e famílias (coisas iguais, aliás) têm de arcar com contas absurdas de telefone, sem que tenha sido dada autorização para a sacanagem.
O argumento é de uma hipocrisia comovente. Primeiro, porque há outros tipos de serviço telefônico que são igualmente incontroláveis. O filho do casal feliz e assentado pode ligar para o disque- Mônica e provocar infarto no chefe da família quando a conta telefônica chegar. O empregado da firma pode ligar 800 vezes por dia para o disque-piada. Por que proibir apenas o disque-sexo?
E é claro que muita gente não ligou para o telessexo e termina tendo de pagar. Mas é claro, também, que muita gente ligou para o telessexo e diz não ter ligado.
Tanto faz. O disque-erótico não mata ninguém –coisa a ser pensada nos tempos de Aids. O moralismo de seus adversários é tão estúpido quanto o ato de ligar para esse tipo de serviços.
Nos dois casos, o moralismo e a pudicícia dominam. A verdadeira liberdade sexual está distante.

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