São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994
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De muitos, um

OTAVIO FRIAS FILHO

Uma das instruções escritas que a polícia de Los Gatos recebeu das autoridades locais, para orientá-la no trato com a horda de invasores, é sobre a impontualidade dos brasileiros. Sociológico e diplomático, o folheto não nos acusa porém de relapsos, mas explica que temos propensão a considerar o tempo como sequência de eventos, e não como contabilidade de horas e minutos.
No estilo "politicamente correto", o que seria um grave defeito aos olhos de qualquer americano vira diversidade cultural e legítima. Mas esse reconhecimento do nosso "direito" à impontualidade aumenta o desconforto ao realçar o abismo entre as duas culturas. Entre o que são, na verdade, dois tipos de cultura: a deles e a nossa, a dos nórdicos e a dos "pardos", a que é capitalista e a que não é, a que teve sucesso e a que fracassou.
Benjamin Franklin era perseguido por uma obsessão: como aproveitar melhor o tempo. A idéia de contabilizar até o que não é passível de contabilidade é básica no espírito do capitalismo e especialmente na mentalidade americana. Tudo pode e deve ser quantificado, reduzido a um denominador comum, equalizado numa mesma linguagem universal e essa linguagem é chamada de dólar.
A hostilidade que os fundadores dos EUA dedicaram à realeza, ao colonialismo e à perseguição religiosa ressoa na histeria atual contra as prerrogativas de sexo e etnia. Nos dois casos se trata de afastar critérios de sangue, de primazia inata, de determinação genética ou geográfica, para que se instaure a lógica indiferenciada do mercado, expressa na linguagem do mais anônimo e líquido dos bens, o esperanto verde.
Não por acaso o dístico do brasão americano significa "de muitos, um", ou seja, a diversidade (do sangue, da origem, do tempo) disciplinada por uma medida qualquer uniforme. E como ficamos nós? Ora, nós somos o futebol-arte! Marcos Augusto Gonçalves mostrou no Mais! de domingo passado de que forma o futebol brasileiro está associado ao intuitivo, irracional e anticapitalista, enquanto que a escola que se opõe à nossa é pura disciplina e tédio.
O trauma de 50 e o banzo de 70, essa monomania em torno da Copa do Mundo (como se fosse, aliás, o único campeonato mundial), o olhar aterrorizado com que confrontamos o nosso passado e o nosso presente futebolístico –tudo isso talvez seja apenas emblema da dolorosa transição de país subdesenvolvido, "original" e cheio de fixações neuróticas, para o estatuto de nação madura.
Afinal, sem as derrotas de 74, 78, 82, 86 e 90, o Brasil não teria a cultura esportiva que tem em matéria de basquete, vôlei e Fórmula 1. Eu, por exemplo, acho que valeu a pena.

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