São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994
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Língua ameaçada

A aprovação pela Câmara dos Deputados do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa que pretende aproximar as escritas de todo o mundo lusófono merece profunda reflexão; afinal, está-se prestes a, mais uma vez, alterar as regras de alguma coisa que, em maior ou menor grau, faz parte do cotidiano de grande parte dos brasileiros, dos portugueses e de africanos.
Em princípio, não haveria por que opor-se a uma padronização da escrita portuguesa em todos os países que a usam. Ocorre porém que essa padronização implicaria custos. Basta lembrar que existem milhares de fotolitos nas gavetas das editoras que teriam de ser refeitos para uma eventual reimpressão de acordo com as novas regras.
Para além das razões econômicas, no entanto, existem também argumentos linguísticos. Em primeiro lugar, se de fato há alguma barreira à compreensão de uma edição portuguesa no Brasil ou vice-versa, o obstáculo certamente não se encontra no uso diferenciado de algumas consoantes (de resto, não resolvido pelo acordo) ou uns poucos acentos e hifens, mas sim em nível semântico, ou seja, uma questão que acordo nenhum poderá jamais resolver. Sempre que um português escrever "cacete" e "bicha", querendo designar apenas "pãozinho" e "fila", despertará sorrisos maliciosos dos brasileiros.
Um outro ponto que deve ser ressaltado é o da estabilidade das regras ortográficas. Não resta dúvida de que uma língua como o português é um idioma vivo que sofreu, sofre e sofrerá alterações em todos os níveis: semântico, léxico e ortográfico. Ocorre porém que já foram tantas as reformas ou tentativas de reforma oficiais (1931, 1943, 1945, 1971) que fica difícil aprender e fixar a forma "correta". Nada mais comum do que meter um acento circunflexo na primeira sílaba do nome do fruto produzido pelo coqueiro. Esse acento caiu em 43.
Por fim, línguas de cultura mais representativas do que o português como o inglês e o francês conseguem ser muito bem utilizadas por seus falantes, mesmo espalhados por vários continentes, tendo passado séculos sem que nenhuma portaria ou decreto as regulamentasse. O Congresso desempenharia muito melhor o seu papel se, em vez de baixar normas que apenas complicam a vida das pessoas, cuidasse para que fosse garantido a todas as crianças do país um mínimo de ensino.

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