São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994
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Por onde passa a história

CARLOS GUILHERME MOTA

"Sou talhado para combater o crime, não para governá-lo..."Maximilien Robespierre, 25 de outubro de 1792 (trecho de discurso encontrado entre seus papéis, após sua execução em julho de 1794)²

As discussões sobre o momento político atual parecem desconhecer que as elites dominantes pensam. Não só pensam, como possuem projetos em geral muito conservadores e por vezes obscurantistas. Pensam e até possuem técnicos em pensamento: consultores, conferencistas, "experts" em economia, política, finanças, com quem se embasbacam em apocalípticas conferências em circuito fechado em hotéis cinco estrelas, que ainda pagam. Que temem? O "fim da história"?
Como a história do Brasil sempre foi um negócio, como ensinou o historiador paulista Caio Prado Júnior, resulta natural que sempiternos e apressados porta-vozes dessas elites ocupem lugar de destaque na imprensa, seja ela liberal, liberal-conservadora ou conservadora "tout court".
Produzem comentários e "análises" que fariam corar até mesmo os monarquistas constitucionais à época da Revolução Francesa. Como nossa elite é pouco ilustrada, eles fazem boa figura.
É o caso do ex-ministro Delfim Netto, um dos pais e ideólogos do regime que deu à luz o "milagre econômico" do início dos anos 70. Há várias semanas, em sua coluna semanal nesta Folha, o professor Delfim, armado em historiador, informou aos desavisados que "na Revolução Francesa elegeu-se, por sufrágio quase universal, uma assembléia constituinte chamada Convenção Nacional, que acabou entre 1793 e 1794 organizando o terror. Durante esse período foram executados, sem processo, mais de 17 mil pessoas e assassinadas outras 25 mil só porque eram quem eram..." Para em curiosa sequência, concluir que "a política econômica do período mostra como pode ir longe o voluntarismo alimentado pela combinação monstruosa da ignorância com o poder absoluto" (Folha, 19/01).
Como também tememos essa combinação –que ocorreu em alta dosagem na era Médici–, a reconsideração de certos episódios da Revolução Francesa pode ser útil, desde que revisitados corretamente.
Em primeiro lugar, com a Convenção Nacional inaugurou-se em 1792 a Primeira República Francesa, que durou até 1804, quando Napoleão promoveu-se imperador. A convenção emprestou seu nome da "Convention", do Estado norte-americano de Massachusetts, e decidiu que a nova Constituição deveria ser ratificada em assembléias primárias (ao general-presidente Médici teria horripilado tal "desmando").
A Convenção viveu momentos e orientações distintas –o girondino, o jacobino, o termidoriano– e ofereceu ao mundo uma das mais notáveis experiências parlamentares da história, com Marat, Condorcet, Brissot, Saint Just, David, Barère e tantos outros.
Teve contra si a coalisão aterrorizadora da aristocracia européia. Venceu a violência da Europa absolutista com o apoio popular interno. Afrontou a corrupção da burguesia comercial e colonialista, em geral girondina, e soube enquadrá-la, recorrendo ao terror e também sofrendo o "terror branco".
Mesmo os jacobinos tiveram que cortar "na própria carne", e o ex-ministro por certo tem notícia da negociata que foi a liquidação da Companhia das Indias... Nem Danton escapou da guilhotina. A Revolução –a República, vale dizer– tentou estabelecer um "maximum" para as fortunas, e aí se deu mal. Mas a República soube também propor a abolição da escravidão nas colônias (16 pluvioso ano 2, há exatos 200 anos) e muita coisa mais.
Que houve prisões e mortes, é claro que houve: tratava-se de uma revolução que quebrou a espinha do Antigo Regime, da sociedade de privilégios da ordem colonialista. Mas sob o governo do presidente Médici não houve prisões, mortes, terror e jornais censurados, inclusive este? E que legado deixou, além de imensas fortunas feitas –sabe-se lá como–, nessa época em que o regime militar possuía os seus delfins civis?
Quanto à política econômica do período, recorde-se que foi após a queda dos jacobinos que o governo abandonou a economia dirigida e suprimiu o "maximum" (24/12/94), ocorrendo desvalorização brutal da moeda ("assignat") e elevada alta de preços... Mas vale notar, 200 anos após a Convenção Republicana Jacobina –de Maximilien Robespierre, Saint-Just, do notável abade Grégoire, de Danton, ou seja, a da segunda e verdadeira Revolução Francesa, a de 1793/94, cujo bicentenário vem passando em suspeito silêncio–, que ainda hoje se ouvem os ecos das denúncias do incorruptível.
São palavras suas, proferidas pouco antes de sua degola: "A contra-revolução está na administração das finanças". Ou seja, no controle do orçamento. Com a absolvição de Fiuza...
Que Fernando Henrique, Lula e nós prestemos atenção na história, pois há 200 anos a poderosa direita remanescente do Antigo Regime, associada à burguesia girondina de negócios e a grupos internacionais, soube, como sabe hoje, proteger seus interesses.
Enquanto isso, a esquerda vacilava, tergiversava e se perdia em debates internos: distanciou-se do país real e foi engolida pelo movimento termidoriano e, depois, liquidada pelo golpe do 18 Brumário. Só conseguiria ressurgir historicamente meio século depois. Mas já num outro contexto e com outros personagens.

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