São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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'Só estamos aqui porque tenho a cabeça no lugar'

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DOS ENVIADOS ESPECIAIS

O carioca Carlos Alberto Parreira, 51, começa amanhã o maior desafio da sua vida com raros fios de cabelo brancos e dormindo até 7 horas por noite sem tomar calmante nem precisar de despertador para acordar.
Técnico da seleção brasileira desde outubro de 1991, ele diz estar com o futuro "bem encaminhado" para depois da Copa: ganhando ou perdendo, vai dirigir o clube espanhol Valência.
Para ganhar um Mundial para o Brasil após 24 anos da última conquista, montou uma equipe convencional e pragmática, na sua própria definição.
Buscou a espinha-dorsal do time nos jogadores que fracassaram na Copa de 90, amargando o nono lugar para o Brasil. "Reabilitou" o símbolo daquela época: o meia defensivo Dunga.
Mais: resistiu durante sete partidas das eliminatórias do Mundial a convocar o atacante Romário, que havia se rebelado por não ser titular. "O Brasil só está na Copa porque mantive a cabeça no lugar", acredita Parreira.
Durante 1 hora e 27 minutos ele concedeu à Folha a mais longa entrevista desde que chegou aos Estados Unidos, há 23 dias.
Sob duas árvores da Universidade de Santa Clara (Califórnia), onde a seleção brasileira fez quase todos os treinos, ele falou de sua vida, do futebol, do que espera a partir da estréia contra a Rússia.
Contou que o capitão da Copa seria o zagueiro Ricardo Gomes, que acabou cortado, por contusão, na terça-feira passada.
Revelou o apelido, nascido há 28 anos, pelo qual é chamado pela mulher: Gigio.
Lembrou a última vez em que chorou por causa do futebol, riu muito e não precisou de tempo para responder sobre as chances na Copa: "Temos tudo para vencer".(Alberto Helena Jr., João Máximo, Mário Magalhães e Mauricio Stycer)

Folha - Seu ciclo na seleção está terminando. Como você se sente na véspera do jogo contra a Rússia, depois de tantas críticas, de ser chamado de burro, teimoso, turrão?
Carlos Alberto Parreira - Chegamos à Copa com a seleção montada exatamente porque o treinador foi teimoso, turrão, burro. Se tivesse sido inteligente, não estaria em lugar nenhum. As condições de trabalho sempre foram zero. Em nenhum momento pude reunir o time para treinar e competir. Em cada partida, havia jogadores diferentes, sempre com obrigação de ganhar.
Folha - Faltaram condições para preparar a equipe para a Copa?
Parreira - Foram 28 dias de treinamento. Nunca se treinou tão pouco. Por isso a máxima: erro zero, qualidade máxima.
Folha - O que esse time poderia ter a mais se houvesse mais tempo para treinar?
Parreira - Uma semana a mais seria ótimo. Faria dois jogos. Pegaria ritmo melhor para competir.
Folha - Você é da estirpe de técnicos que não jogaram bola, não foi profissonal. Esses treinadores estudam mais, são mais articulados, procuram fórmulas mais modernas. Mas o seu trabalho parece extremamente convencional. Por que você é tão mais pragmático do que teórico?
Parreira - A colocação é correta. Muita gente diz que o Parreira é teórico. Isso dá a entender que treina o time no escritório, pô. Estou com esse time há três anos e fiz só uma palestra com slides. Meu trabalho é todo no campo. Pela experiência, sei que o jogador brasileiro não se adapta a coisas diferentes. Digam aí qual o treinador que inovou na seleção brasileira e foi bem-sucedido? Nosso jogador não resiste a esse tipo de coisa. Temos que ser convencionais com eles.
Folha - O cineasta Alfred Hitchcock dizia que os atores são burros. É isso o que você pensa dos jogadores de futebol?
Parreira - Eles têm inteligência esportiva boa. Mas não pode botar zagueiro para jogar na frente ou atacante para jogar atrás.
Folha - Mas o São Paulo foi bicampeão mundial em 1992 e 1993 jogando de uma forma anticonvencional, com até seis jogadores no meio-de-campo.
Parreira - Seis no meio-de-campo me agrada muito, acho ótimo. Quanto mais gente ali para sair em velocidade, melhor. Mas o São Paulo não tinha um Romário, um Bebeto. Ser inteligente é respeitar as características dos jogadores.
Folha - De que forma as derrotas nas Copas de 82 e 86 influenciaram a sua opção por esse esquema convencional de que você fala?
Parreira - O convencional não significa dizer que não é ousado, ganhador e vencedor. Na hora de jogar é dinâmico. O cara que diz que o time brasileiro é defensivo é porque não conhece a seleção brasileira. Um time que tem Leonardo de um lado, Jorginho de outro, Raí e Zinho, Bebeto e Romário, mais o Dunga que bate de fora da área... Chamar ese time de defensivo é estar fora da realidade. Esse time é superofensivo, com liberdade total para jogar.
Folha - Os últimos três anos da sua vida, independentemente de ganhar ou perder a Copa, valeram a pena?
Parreira - Eu estaria melhor financeiramente trabalhando no exterior. Mas faz parte da vida profissional. Não me candidatei, não fiz política, não fiz campanha para ser técnico da seleção. Se você larga, vai embora, vão te chamar de covarde, que não tem peito de assumir. Valeu a pena no sentido de gratificação profissional, de reconhecimento internacional, de atingir o ápice da carreira.
Folha - E os aborrecimentos?
Parreira - São grandes. Afeta vida familiar, profissional. Se não tiver estrutura espiritual, financeira, familiar, você acaba sucumbindo.
Folha - Qual foi o momento mais difícil dos últimos três anos?
Parreira - As eliminatórias, logo depois da derrota para a Bolívia. Tudo que aconteceu estava previsto, já havíamos falado sobre as dificuldades da altitude, dos problemas. Foi difícil superar aquela fase. Só mesmo com a cabeça no lugar. Em determinados momentos eu pensava: "Todo mundo perdeu a cabeça, está todo mundo louco. Quem não pode perder a cabeça sou eu. Vou criar uma couraça, nada vai me afastar do meu caminho". Naquelas condições de trabalho a seleção poderia ficar fora da Copa se seu treinador não tivesse a cabeça no lugar.
Folha - Quem lhe deu mais apoio naquele momento?
Parreira - O presidente da CBF, Ricardo Teixeira, que nos bancou até o final, e a família. Minha mulher espiritualmente é muito forte.
Folha - Ela o chama de Parreira ou Carlos Alberto?
Parreira - Tem outro nome. Quando começamos a namorar, há 28 anos, o humorista Agildo Ribeiro fazia o Toppo Gigio na TV. Então, eu a chamo de Gigia e ela me chama de Gigio.
Folha - Voltando à semana seguinte à derrota para a Bolívia: você pensou em pedir demissão?
Parreira - Eu me perguntava se valia a pena continuar. Tudo era tão desumano, tão massacrante. Outra pessoa que me deu apoio em todos os momentos foi o Zagalo.
Folha -Folha - Você consulta alguém sobre dúvidas em relação ao time?
Parreira - Sim. Mas é evidente que na hora de escalar um jogador eu resolvo. O importante nessa comissão técnica é que ninguém fica enchendo minha cabeça, dizendo faz isso, faz aquilo. Eles sabem que a decisão final é minha.
Folha - Qual foi o último sonho que você teve?
Parreira - Nos Estados Unidos? Não me lembro de nenhum, juro, com toda honestidade. Não me lembro de sonho aqui. Tenho dormido bem. Durmo à 0h e acordo às 6h30, 7h. Acordo sozinho, sem despertador.
Folha - Sua ida para o Valência, da Espanha, está certa?
Parreira - Está muito bem encaminhada. Não quero me envolver com nada de Espanha até que a Copa termine. Não iria mudar nada minha atuação, mas conhecendo o Brasil é melhor esperar.

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