São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Mitologias cartográficas

O imaginário marcou mapas desde a Idade Média

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

As ilustrações do "paraíso" ou dos "jardins do Éden", à margem dos mapas dos descobrimentos, eram mais do que caprichos dos cartógrafos, destinados a estimular a cobiça dos futuros colecionadores.
As imagens do Eldorado ou de ilhas fantasiosas, espreitadas por uma flora tão exótica quanto sua população de canibais, disputavam com as coordenadas geográficas o imaginário dos navegadores.
Segundo o cronista Gomes Eanes de Zurara, os conquistadores portugueses na África diziam estar "na rota do Paraíso".
Por outro lado, na última década do século 15 apareceria o primeiro globo, como um modo de minimizar as distorções na representação da superfície terrestre.
Para o historiador da ciência Roberto de Andrade Martins, da Unicamp (Universidade de Campinas), esta fusão de mitologia e ciência foi característica do período.
"O maravilhoso impregnava a visão de mundo da Idade Média e do Renascimento. Na Grécia de Aristóteles (séc. 4 a.C.) já se sabia que a Terra era esférica. Mas o pensamento medieval remontava à época mítica de Hesíodo e Homero (séc. 8 a.C.), representando o planeta como um disco cercado pelo rio Oceano", diz Martins.
Exemplo disso são os mapas medievais do século 8, cortados por um "T", que simboliza uma cruz, e delimitados por um anel de água. Eles seriam substituídos pelos mapas-múndi renascentistas, que faziam a projeção da esfericidade terrestre, mas não deixavam de alimentar, com suas figuras fantásticas, as utopias do Novo Mundo.
Exemplo disso é a lenda do Preste João –rei cristão que estaria vivendo na Ásia na época das Cruzadas. A notícia se espalhou pela Europa, inundou mapas a partir do século 12 e, muitos anos depois, em 1565, Preste João ainda apareceria num atlas de Diogo Homem –de uma família de importantes cartógrafos portugueses.
É difícil precisar o momento em que a ciência cartográfica se separa desse universo mitológico. O fato é que, progressivamente, ela deixa de se basear no relato de viajantes –ao mesmo tempo em que troca a mitologia religiosa pela ideologia do conquistador.
Segundo o historiador islandês Oswald Dreyer-Eimbcke, as viagens do navegador inglês James Cook (1728-1779) seriam determinantes para que a cartografia assumisse um caráter de ciência exata.
No livro "O Descobrimento da Terra" (Edusp/Melhoramentos), Eimbcke diz que as descrições da Antártida feitas por Cook –um marinheiro com grandes conhecimentos de matemática– tornariam indissociáveis a conjectura teórica e a observação empírica.
Não deixa de ser significativo que esta "cesura" corresponda à mudança dos procedimentos científicos ocorridas no final do século 18 e descritas pelo filósofo francês Michel Foucault em "As Palavras e as Coisas" (Martins Fontes).
Se a ciência clássica do Renascimento operava segundo um sistema de classificações e analogias entre objetos dispersos, as ciências humanas da era moderna se fundavam num empirismo governado pela razão abstrata.
Assim, o ato da conquista pode também ser visto como um ato de apropriação simbólica. Em "Marvelous Possessions" (Possessões Maravilhosas, da Oxford University Press), o crítico Stephen Greenblatt relata o caráter solene com que Cristóvão Colombo rebatizava as ilhas do Novo Mundo, "convertendo-as", através de anexação linguística, ao regime de verdade do dominador.
Em contrapartida, a disputa pelo espaço geográfico, a partir de Cook, já não se dá sobre o plano especulativo do mapa (como ocorreu no Tratado de Tordesilhas), mas na luta pela prova instrumental –como na determinação da primazia na conquista dos pólos, em que o voto de minerva coube aos aparelhos de medição.
Em entrevista publicada no livro "Microfísica do Poder", Foucault afirmou que a história atual havia privilegiado o tempo em detrimento do espaço.
A hipótese implícita aí é a de que o pensamento contemporâneo acompanhou a conquista da dimensão temporal pelas modernas tecnologias, relegando as extensões espaciais para uma "pré-história" recente. Da mesma forma, os saberes do final do século 18 teriam abandonado as utopias renascentistas tão logo deixou de haver mais espaços por descobrir.
Hoje, o geógrafo francês Paul Virilio é o principal responsável por esta exegese temporal. Em "O Espaço Crítico" (editora 34), ele afirma que o homem criou "próteses" tecnológicas que substituem os objetos pela representação virtual, elidindo o espaço físico da percepção.
Enfim, se os cartógrafos medievais representavam o novo com as cores de um quadro de Bosch, Virilio parece negar a própria possibilidade de mapear o mundo, já que qualquer discurso estaria reiterando a sua dissolução.

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