São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Guia para o distante país do sonho

MARIA ERCILIA
EDITORA-ADJUNTA DO MAIS!

Ler é viajar sem bagagem nem "jet lag", disso todos sabemos. Mas não necessariamente sem guia: o "Dicionário dos Lugares Imaginários" reúne todas aquelas paisagens vaporosas que descansam em algum lugar no fundo dos livros, de utopias a pesadelos.
Os autores desta delícia, Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, inventaram regras estritas para seu dicionário: nada de infernos. Nada de paraísos, nem de lugares no futuro. Quanto à forma, reproduziram os guias de viagem do século 19, com mapas e vinhetas.
Folheando este dicionário, constata-se que não há época nem estilo literário livre de geógrafos fantasiosos. De Ovídio aos satiristas ingleses, aos surrealistas franceses e modernistas, as cidades imaginárias se empilham numa arqueologia indolor, sem sangue ou ruínas.
Como construir no ar é de graça, os escritores mais vagabundos de nossa adolescência comungam alegremente com grandes autores. Pode-se saltar da "cidade perdida" de Atlântida e Pala, a ilha utópica de Aldous Huxley, aos acidentes geográficos teratomórficos de Scylla e Caríbdis, descritos por Homero. Ou Lilliput, a cidade miniatura de Swift, e a gruta de Montesinos visitada por Dom Quixote. Ou ainda o Mar de Liddenbrock, minuciosamente cartografado no centro da Terra por Júlio Verne.
É um prazer especial encontrar a descrição da absurda Camelot inventada por Mark Twain, da verdadeira Ilha do Tesouro, a original, de Robert Louis Stevenson; e a Ilha de Próspero de Shakespeare, ao lado do Castelo do Príncipe Próspero de Edgar Allan Poe ("A Máscara da Morte Vermelha"). Da letra A (de "Abaton", cidade inventada por Sir Thomas Bulfinch em em 1892) a Z (de Zyundal, uma das Ilhas da Sabedoria criadas por Alexander Moskowski em 1922), são mais de 1.200 verbetes. Há imaginações que produzem personagens, puras sensações, teorias. As imaginações criadoras de cidades são grandes organizadoras. Seu delírio nunca é sem método: elas inventam leis, paisagens, costumes, topografias. Os absurdos das cidades imaginárias acabam por ser mais harmônicos e expressivos que os arranjos arbitrários das cidades reais.
Cedendo ao prurido classificatório provocado por dicionários em geral, arrumemos estas regiões em alguns continentes imaginários (há de haver muitos outros):
Aventura: regiões "desbraváveis". A Ilha do Tesouro de Stevenson, o Centro da Terra de Júlio Verne, o arquipélago de Mardi de Herman Melville, as Minas do Rei Salomão de Ridder Haggard.
Cidades-metáfora: recurso de moralistas e satiristas. Carregam nos defeitos que enxergam ou nas virtudes com que sonham, criando ilustrações da decadência ou da vontade de perfeição humana: a Utopia de Thomas More, a Lilliput de Jonathan Swift, o País dos Cegos de H.G. Wells, a Camelot de Mark Twain, a Pala de Aldous Huxley, a colônia penal de Kafka.
Cidades-livro: os escritores contemporâneos preferem paisagens transparentes, cidades que não disfarçam o fato de serem feitas de papel e tinta. O mapa como metáfora do conhecimento –as ruínas circulares e a biblioteca de Babel de Borges. As "Cidades Invisíveis" de Italo Calvino. Cortázar, Bioy Casares, Umberto Eco.
E claro, além do frêmito de reconhecimento provocado por cidades que já "visitamos", pode-se contar com a surpresa das esquisitices desenterradas por Manguel e Guadalupi: o que sugere a cidade de Viraginia? Isso mesmo: uma utopia feminista, assinada por Joseph Hall. Ou ainda Capillaria, habitada por enormes louras que comem homenzinhos em forma de órgãos sexuais. E se você pensou em procurar um verbete "Brazil", acertou (veja texto abaixo).
Mas, como nada é perfeito –nem em sonhos– não há uma linha sequer dedicada à Ilha dos Amores de Luís de Camões. Cartas aos autores.

ONDE ENCOMENDAR: o livro "Dictionary of Imaginary Places" (ed. Harvest/HBJ, Nova York, 1987, 434 págs. formato grande, ilustrado) pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, São Paulo)

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