São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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O escritor que se atrasou

Sai no Brasil o segundo livro de Louis Begley

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Louis Begley, 60, é um fenômeno –e um mistério. Em 1991, aos 56 anos, publicou seu primeiro romance, o premiado "Infância de Mentira" ("Wartime Lies", Companhia das Letras).
O livro –autobiográfico– narrava a história de um menino judeu e sua tia tentando passar por católicos para sobreviverem durante a Segunda Guerra, na Polônia. Begley passou a guerra na Polônia, com a mãe, depois de o pai, médico do exército polonês, ter sido preso pelos soviéticos.
Em 1947, a família reunida imigrou para Nova York, onde Begley é hoje um bem-sucedido advogado, sócio do prestigioso escritório Debevoise & Plimpton e especialista em joint ventures internacionais.
Daí a surpresa de estrear na literatura aos 56 anos (por que teria esperado tanto?). Maior surpresa ainda foi quando, dois anos depois, em 93, o renomado advogado publicou seu segundo romance ("O Homem que se Atrasava", lançado agora no Brasil, pela Companhia das Letras) e, em abril deste ano, o terceiro ("As Max Saw It"). Begley diz que está escrevendo o quarto –quatro livros em quatro anos.
"O Homem que se Atrasava" foi visto por alguns como uma sequência de "Infância de Mentira", como se o banqueiro Ben, envolvido como o próprio autor em negócios internacionais, fosse o menino polonês crescido, depois da experiência da guerra.
É difícil saber o que leva de repente um bem-sucedido homem de negócios de meia-idade a escrever romances que são elogiados pela crítica como literatura de alta qualidade e premiados –"Infância de Mentira" foi indicado para o National Book Award, recebeu o prêmio Ernest Hemingway da PEN e o Irish Time/Aer Lingus, além de ter desbancado o "Campos de Londres", de Martin Amis, ao receber o prêmio Médicis de melhor livro estrangeiro na França.
Mais curioso ainda é saber que os personagens principais do terceiro romance de Begley ("As Max Saw It") são homossexuais e que o livro trata das relações amorosas entre esses homens sob o signo da Aids, quando o autor é casado, tem três filhos do casamento precedente e nunca teve uma relação homossexual na vida.

Folha - O sr. é um advogado bem-sucedido. O que o levou a escrever romances aos 56 anos?
Louis Begley - Sempre li muito. Isso continuou quando me tornei um advogado muito ocupado. Não há nenhuma ocupação que me dê mais prazer do que ler, à exceção de escrever. Escrevi meu primeiro livro, porque tinha chegado a hora de escrevê-lo. Tendo escrito o primeiro, escrevi o segundo para não ser autor de um só livro. Tendo escrito o segundo, escrevi o terceiro para não me tornar um autor de dois livros. E agora estou escrevendo o quarto. Mas ainda é muito cedo para falar sobre ele.
Folha - O sr. já sentiu necessidade de abandonar o direito pela literatura?
Begley - Nunca. Gosto muito do meu trabalho como advogado. Também sou profundamente supersticioso. Sempre acho que, se fizer alguma mudança, as coisas começarão a dar errado.
Folha - A advocacia o ajuda a escrever ou atrapalha?
Begley - Atrapalha no sentido de que tenho que trabalhar muito como advogado. Mas ajuda no sentido de que, estando muito ocupado e passando a maior parte do meu tempo praticando o direito, não me sobra muita angústia para o ato de escrever.
Folha - Dizem que o sr. evitou falar do Holocausto por anos. O que o levou a escrever sobre sua experiência durante a guerra? O que o fez mudar de idéia?
Begley - Não é bem assim. Nunca evitei falar do Holocausto. Sempre estive disposto a responder ao que as pessoas quisessem saber. É estranho, mas a maioria das pessoas é extraordinariamente pouco curiosa sobre a vida dos outros. Pessoas que conheço há anos e nunca se interessaram em saber. Sou uma pessoa reservada. Nunca levantei o assunto espontaneamente. Não mudei de idéia. Chegou uma hora em que precisava escrever e essa experiência para mim era a mais forte.
Folha - "Infância de Mentira" é considerado autobiográfico, embora seja um romance. "O Homem que se Atrasava" também é autobiográfico?
Begley - Escritores sérios da segunda metade do século usam com frequência material autobiográfico. É óvio que uso minhas próprias experiências. Mas meus personagens –e Ben, por exemplo– estão no limite extremo da minha personalidade. Não é minha própria história. Não é uma continuação de "Infância de Mentira". Trata-se de alguém que eu poderia ter sido, mas não sou. Assim como a criança de "Infância de Mentira" está no limite extremo da criança que eu fui.
Folha - O sr. acredita que a experiência é indispensável, que não se pode escrever sobre uma coisa que não foi vivida?
Begley - Você pode, a questão é saber qual a qualidade desse produto. Você pode escrever, num apartamento de Nova York, um livro sobre caubóis e índios. Mas não tenho lido muito sobre caubóis e índios. Você sempre pode usar sua imaginação. Veja só o Updike. Passou três dias no Brasil e escreveu um romance sobre o país. Não é algo que eu faria.
Folha - O capítulo de "O Homem que se Atrasava" que se passa no Brasil é baseado na sua própria experiência?
Begley - Fui algumas vezes ao Brasil. Como advogado, representando diferentes tipos de clientes. Uma vez representei clientes estrangeiros que financiavam um empreendimento de minérios. Também representei clientes brasileiros com investimentos fora do Brasil. Conheço um pouco. É um país tão grande, que seria muito audacioso dizer que conheço bem.
Folha - No entanto, Ben diz a um amigo, ao narrador, que ele não deve confiar em brasileiros, porque eles são mentirosos compulsivos. É essa a sua opinião?
Begley - (risos) De jeito nenhum. Ben está implicando com o narrador. Ele é um gozador. Ele não quer que o amigo encontre as pessoas que ele conheceu no Brasil. Faz esse discurso porque acha que é original.
Folha - O sr. se identifica com seus personagens, com Ben, por exemplo?
Begley - Adoro Ben e não gosto de mim.
Folha - Por quê?
Begley - Por muitas razões. Se você me conhecesse, não perguntaria. Ben é como um primo. É feito de coisas que senti, pensei e vi, mas não sou eu. Imagine um ser humano num espaço. Ele está no limite desse espaço. É feito de elementos meus que eu não conheço necessariamente.
Folha - Ben se mata no final, mas o sr. já disse que não aprova o suicídio.
Begley - Nunca disse isso. Eu aprovo. Apenas não cometi suicídio como Ben (risos). Também nunca tive vontade.
Folha - O sr. disse numa entrevista que estava lendo o suíço Robert Walser (1878-1956). É um autor importante para o sr.?
Begley - Tenho lido mais e mais de Walser e, curiosamente, me parece algo estranho. Não faz meu tipo. Acho que é muito sentimental.
Folha - No fim de "O Homem que se Atrasava" há uma referência ao poeta francês Pierre-Jean Jouve (1887-1976). É o que faz seu tipo?
Begley - É. Mas não a poesia. Gosto da prosa. Acho que é um dos grandes escritores do século.
Folha - Jouve era um escritor cristão, que falava sobre o dilema entre o bem e o mal. O sr. acredita em pecado?
Begley - Não sou religioso, mas não posso deixar de ficar impressionado pela presença do mal no mundo, o sofrimento, o mal que os homens fazem uns aos outros. Mas não só o sofrimento infligido de homem para homem. Também a doença, a velhice. É difícil falar em pecado nesse caso. Mantenho um forte debate com Deus, mesmo não acreditando que ele exista.
Folha - Mas Ben está marcado pela idéia de pecado.
Begley - Você não deve confundir o que eu digo com o que escrevo, com o que Ben sabe ou pensa. O pecado é de fato uma parte do idioma, do vocabulário de Ben. Não estou convencido de que a noção de pecado tenha muito sentido no meu próprio pensamento.
Folha - No seu último romance, "As Max Saw It", o sr. trata de uma relação amorosa entre dois homens. Por que decidiu escrever sobre uma relação homossexual?
Begley - Não porque eu a pratique, mas porque a Aids destruiu alguns amigos meus, o assunto e o sofrimento entrou na minha vida, e também porque estou muito interessado no mal e no que a vida faz com as pessoas. A Aids é uma espécie de representação reduzida da vida. Vi muitos amigos próximos morrendo. Fui afetado pela morte deles e pela questão do que alguém faz quando está apaixonado por uma pessoa que é homossexual sob a ameaça da Aids.
Folha - O sr. se sente próximo de alguma causa ou grupo? De algum tipo de militância social?
Begley - Sinto-me próximo dos meus amigos e da minha família.

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