São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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Para rebelde, França já estava na guerra

ALAIN BRILET
DO "LIBÉRATION", EM RUANDA

A 10 km da fronteira com Uganda, sobre uma colina plantada com eucaliptos, a Frente Patriótica de Ruanda (FPR) estabeleceu seu quartel-general desde o início da guerra, em outubro de 1990. Os soldados se instalaram nos barracos dos trabalhadores nas plantações de chá. Foi num destes barracos que Alex Kanyarengwe, presidente da FPR, nos recebeu ontem, no momento em que era informado da chegada ao Zaire dos primeiros contingentes franceses.
Pergunta - O senhor acredita na sinceridade da iniciativa francesa visando trazer uma assistência humanitária às populações civis vítimas dos massacres?
Alex Kanyarengwe - A França está presente em Ruanda desde o início da guerra civil, em outubro de 1990. Já nos primeiros dias ela deslocou um contingente militar para evacuar os franceses de Kigali, dizendo que se retiraria assim que sua missão estivesse cumprida. O que aconteceu na verdade foi que as tropas francesas permaneceram e se colocaram ao lado das tropas do governo, às quais deram assistência financeira e tecnológica. A partir desse momento ficou claro que Paris não queria uma vitória da FPR. Foi preciso esperar os americanos intervirem a favor da aplicação dos acordos de paz de Arusha para que a França saísse.
Pergunta - Certos observadores estimam que essa iniciativa da França visa principalmente lhe reconferir uma neutralidade que foi posta em dúvida.
Kanyarengwe - A tragédia que vivemos se deve a todas as manobras da França, destinadas a manter em seu lugar o partido governista do presidente Habyarimana. Esse regime era totalmente ditatorial e foi vários vezes denunciado por haver cometido massacres e assassinatos políticos. A França o apoiou mantendo tropas, diplomatas e financiamento. É normal que a França se sinta responsável por essa tragédia e que hoje ela procure impedir as investigações internacionais que poderiam demonstrar a cumplicidade francesa nas manobras do poder.
Agora é preciso que essas investigações possam ser realizadas normalmente e que os responsáveis pelos massacres sejam julgados. Desde o início desses problemas, todos os países que repatriaram seus nacionais partiram. A França, que permaneceu, poderia haver pedido à ONU que os 2.500 capacetes azuis não fossem retirados e, na condição de membro influente do Conselho de Segurança, poderia haver exigido o fim dos massacres, pedindo um reforço do contingente da ONU. Além disso, pelo fato de continuar a manter vínculos militares, políticos e diplomáticos com esse governo, ela poderia haver exigido de seus "alunos" que eles pusessem fim aos massacres.
Pergunta - Em sua opinião, portanto, existe um plano secreto por trás da iniciativa humanitária francesa?
Kanyarengwe - Nas declarações francesas sempre existe por trás da idéia de humanitária a idéia da intervenção.
Pergunta - No plano militar, existe uma ligação entre a iminência da votação no Conselho de Segurança e a aceleração da campanha militar da FPR?
Kanyarengwe - De modo algum. Os recentes avanços efetuados por nossas tropas em direção ao sul e ao leste não têm nada a ver com essa decisão. Quanto aos combates que travamos na capital, Kigali, eles fazem parte de uma estratégia que nos leva a fazer uma guerra de desgaste nas cidades principais e uma guerra relâmpago na zona rural, destinada a salvar o máximo possível de vidas humanas vítimas de matanças.
Pergunta - Se prosseguir o avanço da FPR sobre o território nacional, do qual ela hoje controla cerca de dois terços, vocês estariam dispostos a aceitar uma rendição do governo?
Kanyarengwe - Preferiríamos um certo consentimento da parte dele para podermos reunir os meios para reconstruir o país. No espírito dos acordos de paz de Arusha, que constituem um quadro de referência político para a reconstrução de nosso país, estaríamos dispostos a acolher o partido do governo sob a condição de que seus membros fossem levados a responder por seus atos.
Pergunta - O antigo embaixador da França em Ruanda deseja retornar para apresentar a iniciativa francesa. O senhor estaria disposto a recebê-lo?
Kanyarengwe - Todo contato é interessante. Ele deve, aliás, chegar na quarta-feira e não vejo inconveniente em recebê-lo.
Pergunta - Que consequências poderia ter a entrada da França na guerra em Ruanda, como o senhor supõe ser o caso?
Kanyarengwe - Se a França intervier militarmente, essa guerra vai mudar e corre o risco de se agravar. E as populações que o governo francês afirma querer proteger se transformarão, elas mesmas, em vítimas dessa intervenção. Além disso, essa entrada correria o risco de incendiar a região inteira. No Zaire e também no Burundi existem as mesmas configurações geográficas e os mesmos tipos de populações. Portanto, é a região inteira que se sentiria ameaçada.
Pergunta - Em Paris a FPR é vista como um movimento da minoria tutsi, com um potencial eleitoral máximo de 15%. Não se visualiza a FPR entregando o poder nas mãos do vencedor das eleições que vocês se comprometeram a organizar, uma vez que a paz estiver restabelecida.
Kanyarengwe - Vocês ocidentais nos mandam seguir seu modelo de democracia. A democracia se adquire através da adesão a uma certa política e a um programa social. Nós não a enxergamos sob uma cobertura étnica em que os privilegiados dominam e em que reina a exclusão. Foi isso que fez o regime que a França apoiou.

Tradução de Clara Allain

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