São Paulo, sábado, 25 de junho de 1994
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Copa confronta hegemônicos e messiânicos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Em relação ao futebol os países se dividem entre hegemônicos e messiânicos. Os primeiros gostariam de anexar a Copa do Mundo à prataria da família, enquanto os segundos querem ganhá-la para cumprir a vontade do Senhor. Os países do futebol primeiro-mundista, como a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Itália, e mesmo os mais modestos, como a Suécia ou a Holanda, são importantes demais para considerar o caneco como um ostensório.
Querem muito ganhá-lo mas podem passar sem ele, ou esperá-lo com dignidade, sem afobação, como jovens de boa família aguardam, num regime monárquico, um título de barão. Só para dar uma idéia: a Suécia, por exemplo, não faz tanta questão assim de ganhar muitos prêmios Nobel porque ela é o prêmio Nobel, o Alfred Nobel que inventou o prêmio era sueco, e a grana do Nobel é calculada em coroas suecas.
Os outros países, os do Terceiro Mundo, esses não têm nada e dependem do caneco por motivos enroscados. No plano da fama internacional, catalogada nas enciclopédicas exigentes, nos "Who's Who", só aparecem de tempos em tempos, em geral com algum nome do âmbito das artes. O México compareceu, tempos atrás, com uma súbita safra de pintores, os Rivera e Frida Kahlo, Orozco e Siqueiros, Tamayo.
A Colômbia impôs sua presença com um romancista imperioso, García Márquez, prêmio Nobel de 1982, e a Argentina com um Nobel nato que jamais foi agraciado com o prêmio, um estranho gênio de um tipo que em geral só dá no primeiro mundo, Borges. Mesmo uma pequena ilha das Antilhas como Trinidad, em superfície cerca de um oitavo da nossa ilha de Marajó, pode chegar aos livros da fama se produzir um escritor como V.S. Naipaul.
Assim também, mesmo um país gigantesco como o Brasil só chega aos mesmos livros graças a um nome ou outro, como os de Jorge Amado ou Oscar Niemeyer.
Ou graças ao futebol, que já nos deu três vezes a Copa do Mundo e para sempre a taça Jules Rimet, que prontamente deixamos que ladrões roubassem e fundissem para vender o ouro. Mas não importa. Quem pouco tem gasta tudo que ganha. Estamos, o Senhor seja louvado, a caminho do tetracampeonato, depois de recebermos com heróico brado retumbante a vitória contra a Rússia.
O Brasil, que nunca fez nada para reconhecer o que deve aos negros que o construíram, aos negros passou a dever mais ainda graças a Pelé, único brasileiro realmente conhecido em qualquer esquina de qualquer cidade do mundo. Até os americanos cultuam Pelé, pois não é preciso gostar de futebol para cultuar os que figuram em mitologias.
Embora não saibamos quais foram os trabalhos de Hércules, sabemos que foram doze. Ainda que ignoremos as regras do futebol, sabemos que Pelé ultrapassou a meta inacreditável dos mil gols.
Temos, assim, que para os países líderes, os que a si mesmos se consideram modelos de civilização, a serem imitados pelos demais, a Copa do Mundo é mais uma confirmação de que sua hegemonia seria a correta.
Uma Itália tetracampeã (vade retro) difundiria pelo mundo a noção de que é óbvio que só a herdeira dos Césares e dos papas, com as mãos agora suficientemente limpas, pode erguer bem alto o cálice dos campeões. Se for a Alemanha a primeira a atingir o tetra (pé de pato mangalô três vezes), ficaria sugerido que o padrão desejado da raça humana seria o do trabalho incessante que "omnia vinces" e acaba por colocar um povo "ber alles".
Caso o tetracampeão seja o Brasil (seja feita a vossa vontade assim na Terra como nos gramados), confirma-se que os últimos serão os primeiros.
Vi, num jogo quase inacreditável da Copa, o Eire jogar futebol muito melhor do que a Itália. Venceu por 1 a 0. Já bastava, para orgulho da Irlanda, que a Inglaterra sequer tivesse chegado à Copa.
A Irlanda é um fenômeno de difícil explicação, um país do Terceiro Mundo pregado nas Ilhas Britânicas. É pobre, católico, subdesenvolvido. Visitei Dublin durante a guerra, em 1943, num mês já meio frio de setembro, e vi meninos descalços na rua.
Interessado em checar o número da casa em que morara Leopold Bloom na r. Eccles, tentei consultar, na biblioteca pública da cidade, um exemplar do "Ulysses", mas tal livro jamais entraria naquele austero prédio, me disse o funcionário a quem fiz o pedido, porque era contra os bons costumes e desrespeitava a Irlanda.
A Irlanda não tem fama de grande futebol. Nem ostenta qualquer outra grandeza digna de nota. Só entraria para o "Livro Guinness de Recordes" como produtora da melhor cerveja preta do mundo, a cerveja Guinness.
É tão especial que há quem a misture com champanhe de boa safra para compor o aperitivo chamado "black velvet". Em compensação, a literatura dessa pequena Irlanda não teme confronto com nenhuma outra. O país esbanja talentos como Sheridan, Synge, Wilde, e gênios como Swift, Yeats, Shaw, James Joyce.
Se ganhar a Copa, a Irlanda não dirá, como os países do Primeiro Mundo, que ganhou por ser mais atlética, ou mais disciplinada, ou por ter métodos científicos de treinamento. Terá ganho porque Deus é irlandês. Mesmo os irlandeses mais rebeldes são, no fundo, filhos da Santa Madre igreja.
Os dois livros com que James Joyce revolucionou a literatura mundial começam, respectivamente, com uma paródia da missa católica, "Ulysses", e uma evocação da criação do mundo na Bíblia, "Finnegans Wake".
Caso esse bravo time da verde Irlanda que derrotou a Itália conquistasse a Copa, haveria missa campal no Central Park de Nova York e uma procissão fluvial no Liffey, que banha Dublin. Não me espantarei se, cortada em pedacinhos, a camisa verde do jogador Houghton, que marcou o gol contra a Itália, virar relíquia.
Seja como for, cidadão que sou de país terceiro-mundista, que depende do futebol para sufocar em si tanto o pecado original como os complexos mais banais, tenho certeza de que o fim do mundo será um jogo definitivo, disputado entre hegemônicos e messiânicos, armados até os dentes. A Copa do Apocalipse.
Recado para frei Betto
Graham Greene, o romancista inglês que, de tão católico e revolucionário que era, bem poderia ter sido irlandês, deixou para a posteridade uma curiosa biblioteca, que está sendo disputada por compradores da Universidade do Texas, da British Library, Georgetown, e outros. São apenas uns 3.000 volumes, mas muitos deles cobertos de anotações preciosas.
Greene usava as margens das páginas e os espaços livres do livro que estivesse lendo para anotar o que lhe viesse à cabeça. Não apenas em relação ao que lia e sim, frequentemmente, como quem trabalha num diário ou teve a idéia de um conto, de um personagem de romance, de um filme. Os livros de sua biblioteca se tornaram, assim, um precioso subsídio a qualquer trabalho que se deseje empreender sobre o autor de "O Poder e a Glória".
Em matéria que a "New Yorker" publicou sobre essa biblioteca encontro um livro brasileiro, "Fidel e a Religião", de frei Betto. A nota que nesse livro deixou Greene é uma indicação das dúvidas que o acometiam ao criar personagens dispostos a transformar caridade cristã em ação revolucionária. A nota é a seguinte: "Sou a favor da Dúvida e contra o Dogma. Um católico que duvida pode facilmente trabalhar ao lado de um comunista que duvida."

LEIA MAIS sobre Graham Greene à pág. 5-7

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