São Paulo, sábado, 25 de junho de 1994
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Discussão sem hipocrisia

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI
EM TERMOS

A questão do aborto provocado aflorou, nos últimos dias, em decorrência de dois fatos isolados no eixo da via Anhanguera. Em Vinhedo, a Justiça condenou uma mulher por ter provocado aborto e quase morrido por grave complicação.
Esquecem, aqueles que a julgaram, que 1,5 milhão de mulheres o praticam todos os anos no Brasil e que, se existe alguma culpa, não é delas e sim do sistema de saúde, que não oferece planejamento familiar; das escolas, que não ensinam sexualidade e reprodução humana e da sociedade, que não ampara as mulheres desprotegidas na tarefa de criarem seus filhos.
O outro fato ocorreu no Hospital da Mulher da Unicamp (Caism) –por mim implantado e dirigido até 1987 e que sempre assumiu corajosamente seus objetivos sociais–, onde seu diretor tornou público abortos ali realizados em casos de malformações graves e está sendo processado.
Outro paradoxo, pois não se pode ignorar que, possivelmente, centenas de abortos vêm sendo realizados pela mesma razão, à medida que as novas tecnologias de aconselhamento genético e ultra-som permitem, precocemente, na gravidez, o diagnóstico das condições genéticas e de malformações.
É irracional e perverso fazermos esses diagnósticos, sem oferecer solução ao casal angustiado, particularmente sabendo que os métodos de que se dispõe hoje, para interrupção de gravidez, são mais simples e quase desprovidos de risco.
Não podemos ignorar que todos esses fenômenos sociais prevalentes, cuja lei não consegue impedir, criam uma "jurisprudência" própria e cruel na ilegalidade.
Pratica-se aborto em qualquer idade da gravidez, o que provoca alta mortalidade e morbidade nas mulheres e as criminaliza injustamente. Surge um comércio sujo e ilegal. Os médicos são frequentemente colocados em situação constrangedora frente a casos específicos. O fato é que não se consegue colocar limites éticos naquilo que é praticado escondido e ilegalmente.
Pessoalmente, sou contra o aborto. Qualquer pessoa em sã consciência é contra o aborto. As mulheres não engravidam pelo prazer de abortar. Entretanto, não sou e nem deveríamos ser hipócritas a ponto de manter o atual estado de coisas.
A solução urgente é discutir o aborto ampla e profundamente, em todos os fóruns, terminando no Congresso Nacional. Se fizermos isso, tenho esperança de que iremos descriminalizá-lo para poder combatê-lo e, com o tempo, terminar com a sua prática.
É evidente que a implantação de um amplo e eficiente programa de educação em reprodução e de planejamento familiar na rede pública de saúde, incluindo os métodos recomendados pela Igreja Católica, é indispensável para que o aborto não seja mais um método de anticoncepção.
A sua descriminalização deve existir unicamente com o objetivo de tirar a carga desumana que a sociedade coloca sobre a mulher: a de responder por um crime. Com sua descriminalização, deve-se introduzir o conceito e a prática de objeção de consciência, a fim de que os médicos, que não querem praticá-lo, possam deixar de fazê-lo, alegando razões religiosas ou de foro íntimo.

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