São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Crime e Castigo

MOACYR SCLIAR

O homem que, sentado a meu lado no ônibus, lia o jornal, tinha o tipo clássico desses que, comentando as notícias, puxam conversa; e de fato, não demorou muito, perguntou:
– Viu a notícia desse rapaz de Recife que foi morto depois de roubar um pacote de biscoitos de um supermercado?
– Vi –respondi, cauteloso: nunca se sabe qual a opinião das pessoas a respeito dessas coisas. Mas o comentário do homem, já maduro e de expressão amarga, não era –infelizmente– de todo inesperado:
– Eu acho que, se mataram, fizeram muito bem. Para acabar com os ladrões e assaltantes, só matando mesmo. Onde é que se viu, roubar biscoitos de um supermercado?
Eu poderia ter feito um comentário do tipo mas de outro lado –por exemplo, "mas de outro lado, com os preços que estão cobrando...
Certamente não valeria a pena; talvez até precipitasse um bate-boca que, àquela hora da manhã, eu não tinha ânimo para enfrentar. Fiquei calado, portanto, enquanto o meu vizinho de banco ruminava a sua raiva. De repente, algo lhe ocorreu, e ele voltou-se para mim, intrigado:
– Não teve uma rainha que disse que os pobres deveriam comer biscoitos se não podiam comer pão?
– Maria Antonieta, da França. É, atribuem a ela uma coisa parecida.
– Maria Antonieta... Aquela que eles degolaram?
– Guilhotinaram.
– Mas cortaram a cabeça dela, não cortaram?
– Cortaram.
Ele ficou um instante em silêncio; e depois riu, sarcástico:
– Viu só? Deu um conselho errado, ficou sem a cabeça. Bem feito:
ela tinha de saber que pobre não foi feito para comer biscoito.
Não respondi. Não era aquela a conclusão que eu tiraria da triste história, e nem eu estava entendendo muito o bizarro raciocínio, mas, como disse antes, uma discussão a respeito era a última coisa que eu queria. Mesmo porque o ônibus chegava a seu destino e estava na hora de descer.

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