São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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O maior inimigo da modernidade

FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O debate proposto por Luís Nassif, com "O fenômeno Collor" na sua coluna desta Folha, no último dia 7, é dos mais importantes, entre outras razões porque pode ajudar na decifração das campanhas dos candidatos à Presidência da República, nesta eleição de 94.
Ele diz respeito ao controverso papel da personalidade na História. Nassif sabe que pisa em terreno minado, e, por isso, no seu artigo, insinua uma objetividade "da coluna", que vê em Collor um divisor de águas na política brasileira, contrastando com as próprias opiniões e posições do "colunista", que viu na atuação de Collor um risco para a democracia.
O debate sobre o papel de Collor ficou inconcluso, pois como ocorre frequentemente no Brasil, passou-se sobre ele como gato sobre brasas. Um manto de esquecimento caiu rapidamente sobre momentos como aqueles que são, como Nassif anotou muito bem, decisivos, pontos de não-retorno que marcarão trajetórias ulteriores. Até porque, como a campanha eleitoral está mostrando, não convém relembrar que ACM foi um dos principais sustentáculos de Collor, nem que a Rede Globo foi sua principal maquiadora, nem que os empresários e as empresas mais importantes do país financiaram sua campanha, seus desmandos e estiveram metidos e metidas, até o pescoço, nas suas patranhas de corrupção.
A questão decisiva, que certamente permanecerá controversa, é a do papel da personalidade na história. Para uns, de linhagens teóricas e doutrinárias individualistas –denominação que não é pejorativa– o papel da personalidade é decisivo: é ela que faz a História. Outra corrente, mais filiada ao materialismo, pende para o lado de que a personalidade ela mesma é um produto da própria história e de suas conjunturas e, portanto, embora não seja desprezível, não é decisiva. A personalidade deve ser entendida como o máximo de subjetivação de processos históricos.
No nosso caso, nessa linha de interpretação, o bufão trágico estaria virtualmente inscrito nas condições da crise brasileira, e chamou-se Collor apenas por acidente. O virtualmente não quer dizer que ele surgiria de qualquer modo: significa apenas, que sua possibilidade estava dada, marcando os processos sociais que lhe deram a chance, ao invés de chamar a atenção para a força da personalidade. Esta é a diferença crucial.
A observação de grandes personalidades na história parece dar mais razão à concepção materialista. As semelhanças de personalidade, por exemplo, entre Hitler e Mussolini, para tomarmos dois dos maiores bufões-trágicos de toda a história mundial, não explicam muito as enormes diferenças que resultaram de suas intervenções na história.
Até onde se sabe, talvez no registro de um psicologismo vulgar, ambos eram histriões, delirantes, narcisos até onde se possa imaginar, dotados de um magnetismo pessoal indiscutível mas, ao mesmo tempo, fracos, inseguros, carentes de afeto, atributos que davam lugar, frequentemente, a iradas explosões do mais completo descontrole, a abater-se sobre quem estava mais próximo.
A tomada de decisões, nessas condições, transformou-se, no mais das vezes, em equívocos espantosos, exemplificados na recapitulação dos erros cometidos por Hitler na defesa das posições sob ataque aliado na Normandia. Mas todos os comentários são unânimes em dizer que a derrota nazista já estava selada pelo rolo compressor soviético na frente Leste.
Aliás, sintomas ou traços de personalidade como aqueles estão presentes nos mortais mais comuns, que não chegaram –hélas!– à suprema direção de sociedades complexas, o que desqualifica, desde logo, a suposição de que, toda vez que se dá uma crise de grandes proporções, paranóicos e megalomaníacos vêem chegarem suas chances. A depressão dos anos 30, que viu Hitler chegar ao poder na Alemanha, viu Roosevelt nos EUA.
Mas as diferenças nos resultados tanto da guerra, como da paz que se seguiu, provavelmente não se devem a nada que tenha a ver com as personalidades dos bufões trágicos, nem dos seus equívocos. Devem-se, antes de tudo, aos lugares ocupados pelas economias da Alemanha e da Itália na economia capitalista e mundial e àquele que a ex-URSS chegou a ocupar na correlação mundial de forças; e o desequilíbrio fundamental deu-se com a entrada dos EUA na guerra.
As mesmas posições já determinavam as capacidades militares respectivas, em franco contraste. Embora os delírios de Mussolini e Hitler se equivalessem em extravagância, a Itália aventurou-se apenas a uma melancólica e bufa invasão da Abissínia, tema de filmes com os quais os próprios italianos gozaram o despautério do Duce. Enquanto a Alemanha dominou praticamente a Europa Ocidental e Central, e a safra de filmes que não cessam de produzir nada tem de irônica: buscam, desesperadamente, exorcizarem a tragédia, a ignomínia do Holocausto. Os filmes alemães são culpa, e os italianos são deboche.
Os resultados, equivalentes no plano da chacina dos "gulags" e dos milhões de vítimas do processo de coletivização da agricultura, e inteiramente diferentes no plano da vitória da URSS na guerra, dificultariam a teoria da predominância da personalidade sobre os processos societais mais amplos no caso de Stalin, cujo registro psicológico conhecido é o de uma personalidade fria e calculista, sem os arroubos e o magnetismo pessoal dos bufões-trágicos ocidentais.
Tudo isso não absolve a responsabilidade dos homens pela sua intervenção na história. O Tribunal de Nuremberg não julgou deuses que exageraram no uso dos poderes da divindade: julgou homens que renunciaram à condição de homens, historicamente determinados por um longo processo –o processo de constituição da Modernidade– pelo qual os valores dessa modernidade se constituíram numa "segunda natureza" humana. É isso que permite não concordar com o suposto papel determinante da personalidade na história, sem renunciarmos à possibilidade de julgamento das ações concretas de homens concretos.
O caso do bufão-trágico brasileiro chamado Collor talvez –em benefício da dúvida– também possa ser interpretado pelo mesmo cânone. Sua eleição situa-se no cimo de uma crise sem paralelo: relembremos que a inflação deixada por Mailson, hoje grande consultor, era de quase 90% ao mês. Houve, aqui, um claro processo de subjetivação "in extremis" –que é a marca específica da "personalidade"– de processos societais mais complexos.
As chamadas realizações de Collor apenas radicalizaram o que já vinha sendo experimentando e estava no discurso ideológico também há mais de uma década: a privatização, sua "pièce de résistance", foi tema de uma longa campanha da "Gazeta Mercantil" ainda na metade dos anos 70. A reforma do Estado também estava na agenda pública muito antes de Collor, e o arremedo de reforma da administração pública levado a cabo na sua gestão foi um desastre do qual o Estado brasileiro custa muito a recuperar-se. Seria ocioso, sem o benefício de uma demonstração definitiva, prosseguir com a lista dos desastres colloridos. Mesmo porque pode-se argumentar que, tendo apenas radicalizado pontos que já estavam na agenda, nisto residiria precisamente o ponto de não-retorno posto por Collor na política brasileira.
O que deveria ser inquestionável é que o caminho do progresso, se quisermos chamá-lo ainda assim, ou do aperfeiçoamento das instituições democráticas, ou ainda de uma democratização que esteja no rés-do-chão das relações sociais mais importantes, assim como nas do cotidiano, não deveria suportar-se no uso do carisma negativo. A apelação a essa força que parece estar por cima de tudo e de todos, no limiar o século 21, é um franco sinal de atraso. E perigoso.
A sedução do carisma, foi e será um ardil da tradição –embora no próprio Weber ele apareça ambiguamente como inovação– contra a modernidade. Adorno e Horkheimer refletiram, a partir da própria ascensão do nazifascismo, sobre essa síndrome de impotência da história, essa recusa ao cumprimento das promessas da modernidade por medo de sua radicalidade. E por isso regride, buscando refúgio numa comunidade, numa identidade, para sempre perdido; recusam e temem o outro, o diferente. O super-homem nietzscheano, que se quer a ultrapassagem do simplesmente humano, do "demasiado humano" é uma regressão, a renúncia aos processos civilizatórios que domaram a besta. Daí sua compulsão de vitória a qualquer preço, sua falta de compaixão, seu ódio ao cristianismo, essa "rebelião dos fracos".
No discurso collorido isto traduziu-se por "vencer ou vencer", pelo "gozo artístico" de sua própria implacabilidade, a estetização de uma força que realizava pretensas reformas a qualquer custo, com total desprezo pelas repercussões sociais, e pelo drama humano que demissões em massa poderiam causar, como causaram. Era o ridículo "duela a quien duela". Não à toa, essa é a mesma matriz do neoliberalismo, um novo integrismo ou fundamentalismo, como o chamou Rolf Kuntz em belo artigo na "Revista USP".
A força e o recurso à racionalidade instrumental aparecem então como os únicos meios para submeter sociedades complexas, que já deixaram para trás o bucolismo do sempre igual, do mesmo. Hoje, dispomos do conhecimento e do domínio de processos que dispensam esse tipo de força regressiva. No mundo da globalização em tempo real, o apelo a esse tipo de personalidade é sinal de retrocesso, um anacronismo que está a indicar o domínio do fetiche do espetáculo, a estetização da política. Sintomaticamente, Collor corria de "jogging" nos jardins do Chateau d'Artigny, um culto ao corpo, que no caso era a transformação do seu corpo físico num "corpo místico político", na interpretação de Marilena Chaui. Essa metamorfose foi utilizada à exaustão pelo fascismo.
Collor foi essa subjetivação "in extremis" de uma crise sem precedentes: do medo e do recuo ante à modernidade; do uso da razão instrumental contra a razão substantiva: a Rede Globo, os meios técnicos mais modernos, contra os direitos sociais, que finalmente plasmam a individualidade moderna. Vicentinho, pois, não foi uma criação de Collor, nem sequer alguém que teve sua chance devido ao "tournant" que Collor teria representado na política brasileira. Ao contrário, sua atuação é, por sua vez, a subjetivação da formação de um novo e poderoso agente social, e ela é a modernidade, da qual Collor era um inimigo jurado, apesar de vestido com plumas e paetês.
O objetivo das câmaras setoriais, com Collor –na verdade elas começaram antes, sob a presidência de Sarney– nunca foi a construção de acordos como os que saíram para a indústria automobilística e outros ramos industriais; ter-se chegado a eles foi toda uma construção dos atores sociais envolvidos, quase à revelia do governo Collor. Cujo mandato destrutivo foi a trágica conjunção de uma crise sem precedentes, que lhe deu os votos populares, e a obsessiva perseguição por parte da burguesia nacional de demolir as modernas formas de representação que os trabalhadores construíram duramente desde uma história muito remota e que apresentaram o surpreendente resultado da construção de centrais sindicais numa década de crise, desafiando e contestando o raciocínio economicista que associa crise econômica com impotência dos sujeitos da cena sócio-político-econômica.
A besta do Apocalipse anuncia sempre o novo tempo: apenas na condição de derradeira e violenta crispação do velho tempo. Vomitando fogo e fumaça pelas ventas, dá o espetáculo de sua própria consumição.

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