São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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A Copa do mundo e a esquina da avenida Brasil

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Cidadania e patriotismo em tempos de Copa do mundo de futebol. São Paulo, esquina das avenidas Rebouças com Brasil, um dos maiores e mais perigosos cruzamentos da cidade. É ali que os miseráveis vendem patriotismo –como quem vende alho, chocolates ou panos de chão– no demorado jogo de sinais de trânsito.
Armado com dezenas de bandeiras brasileiras em plástico com mastro de madeira, fitas verde-amarelo, adesivos, bonés, o ambulante sujo, descalço, inchado dos efeitos do álcool, aproxima-se dos vidros dos carros da burguesia dirigente. Enfia sua boca banguela pela janela aberta de um Mitsubishi importado.
Ou porque estamos todos felizes hoje que o Brasil estréia na Copa, ou porque o homem é de fato uma ameaça, o dono do carro abre um sorriso e compra a bandeira. O objeto de matéria plástica, coberto por uma fuligem de poeira de poluição, tremula hesitante na mão do filho do burguês do Mitsubishi.
O ambulante prossegue na sua caça impiedosa por janelas abertas. Na tarde sem vento, as bandeiras pendem amortalhadas dos mastros curtos que ele carrega debaixo do braço. Em nada lembram a imponência altiva que se espera das bandeiras.
O homem segue meio trôpego por entre as fileiras de carros; a bandeira que ele vende transforma-se numa extensão de sua miséria pessoal (uma terceira mão que ele estende, tanto para pedir quanto para roubar) e no símbolo oficial da infinita reprodução dessa miséria –afinal, quantos homens e mulheres e crianças como aquele não estão espalhados pelos sinais de trânsito dos cruzamentos de todas as cidades brasileiras hoje?
Enquanto o sinal não abre, ocorre que não muito longe dali, num bairro de classe média baixa, meu vizinho –um troglodita que passa o fim-de-semana ouvindo em alto volume Chitãozinho e Xororó, ou o pior rock pauleira americano, e que já foi advertido pela polícia–, num arroubo de espírito de cidadania, coletividade, ou patriotismo espontâneo, dependura-se numa escada para enfeitar a rua toda, de ponta a ponta, com bandeirinhas verde-amarelas.
O sinal abre enfim para os carros. A classe dirigente, a classe dominante brasileira, a mais selvagem, sórdida e truculenta do capitalismo deste Hemisfério Sul, a burguesia acelera seus pedais –agora sem o ídolo Ayrton para inspirá-los, é bem verdade, mas satisfeita com a aura de glória inspirada pelo futebol.
Pelo espelho retrovisor –enquanto maquino planos de derrubar com meu carro, por acidente, a escada de onde se dependura o troglodita do vizinho–, vejo os últimos cacos de dentes podres do ambulante que acena para o filho do burguês e vai ganhando a ilha, à espera de mais um sinal vermelho.
Aquela cena deprimente só pode ser típica do Brasil cordial. O comportamento daqueles personagens (o burguês, o ambulante, o vizinho que representa a classe média inculta e materialista) deve ainda hoje embasbacar os teóricos da psicologia ou do caráter nacional brasileiro.
No país dos morta-fomes, prevalecia a cordialidade, a condescendência entre as classes em tarde de Copa do mundo. Velho retrato do Brasil: o descalabro da vida econômica, o analfabetismo e a indigência total das classes inferiores, o egoísmo dos açambarcadores de renda e posições. O poder público (representado pelo carro de polícia em vígilia permanente na esquina da Rebouças com Brasil) incapaz e inoperante.
Essas idéias são um misto de Sérgio Buarque de Holanda e Paulo Prado, na tentativa talvez frustrada em grande parte que ambos fizeram de compreender a gente brasileira burra e bronzeada.
"Raramente nos aplicamos de corpo e alma a um objeto exterior a nós mesmos", dizia Holanda sobre o espírito individualista do brasileiro cordial. Daí a bandeira brasileira não ser propriamente bandeira, mas apenas a terceira mão do indigente ou a extensão, a antena, do Mitsubishi do burguês.
Daí a bandeira não ter a imponência sempre reluzente nas listras e estrelas que a bandeira americana tem –estendida às dezenas nas alfândegas dos aeroportos americanos, para lembrar-nos em que território estamos pisando, a bandeira americana é o símbolo máximo de que os americanos sabem quem são.
Nós, brasileiros, ainda não sabemos. Pelo menos o ambulante não sabe, ou não torceria pelo mesmo país pelo qual torce seu espoliador imediato, o dono do Mitsubishi. Eu mesmo me recuso a torcer pelo mesmo país por que torce o meu vizinho que passa toda a manhã de domingo lavando, ensebando e polindo seu Gol 1000, enquanto sonha com o Ômega Suprema anunciado nos intervalos de jogos do Brasil na Copa do mundo: "Ômega Suprema, você também pode ter um".
Continuamos sem saber quem somos, ainda que (especialmente em épocas de Copa do mundo) as "inteligências ornamentais" se arvorem ao lugar de analistas e não se cansam de tecer considerações sobre a alma da nação do futebol. Resultado do desencontro entre as idéias e a vida real brasileira, as inteligências ornamentais são também fruto da bacharelice (ou da jornalistice, admitamos) que finge de intelectualidade.
Mas é claro que já não estamos em época para revoluções ou guerras que chacoalhem o entorpecimento das classes. A massa silenciosa, aliás, nada quer, nada responde. É a vítima da neutralização geral dos sentidos, como diz pessimisticamente Jean Baudrillard.
Afinal, estamos bem –pelo menos parte de nosso destino repousa nos pés de um representante brasileiro genuíno, cafuso amulatado, ou mulato acafusado, Romário. Let us go for it! E esperemos então próximo jogo –de sinais de trânsito.

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