São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os ancestrais de "Macunaíma"

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os ancestrais de"Macunaíma"
'A Saga do Anti-herói' analisa heróis picarescos de Brasil e Espanha
Para desespero dos ufanistas de plantão, Deus não calça chuteiras, o café é das arábias e mesmo a malícia e a preguiça que tão bem vestem Macunaíma, herói de nossa gente, têm raízes estrangeiras. Os pícaros espanhóis do Século de Ouro estão entre os mais ilustres antecedentes do escracho macunaímico. À sua genealogia, Mario M. González, professor de Literatura Espanhola na Universidade de São Paulo, dedicou "A Saga do Anti-herói", originalmente uma tese de livre-docência, que sai agora em livro pela editora Nova Alexandria.
Depois da Reconquista das terras espanholas aos mouros e da expansão colonial, as palavras substituíram o vil metal e é da sua lavra que saem os tesouros que dão nome ao século. Ainda que lhes tomassem os anéis preciosíssimos da lírica barroca, sobrariam aos espanhóis dedos habilidosos o bastante para içar as velas do realismo moderno, com Cervantes, do Quixote e das Novelas Exemplares, e a picaresca.
González divide seu livro em dois projetos distintos, mas interligados. Numa primeira etapa, estuda o núcleo fundador do gênero constituído por três narrativas: o precursor "Lazarillo de Tormes" (1554) de autoria anônima, "Guzmán de Alfarrache" (1599), de Mateo Alemán, e "El Buscón" (1626), do poeta Francisco de Quevedo. Todas três são dominadas pelas aventuras e desventuras biográficas de criados astuciosos e não exatamente honestos que buscam fugir à fome e ascender socialmente pela "ma¤a" e pela "fuerza" –os pícaros.
A partir de um esforço de contextualização histórico-social dos romances e de um exame minucioso e atualizado da vastíssima bibliografia sobre o assunto, o autor trabalha uma conceituação própria do gênero picaresco que lhe permita passar a uma nova etapa: o estudo de romances brasileiros correntemente associados ao rótulo picaresco.
É o caso do realismo intuitivo e embrionário das "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antonio de Almeida, e do rapsódico "Macunaíma", de Mário de Andrade, mas também de romances recentes e desiguais (como o folhetim de Márcio de Souza, "Galvez, o Imperador do Acre", ou "A Pedra do Reino", de Ariano Suassuna).
A dificuldade está em encontrar um modelo teórico de narrativa picaresca que, no mesmo tempo, não perca os liames com o fenômeno específico espanhol e dê conta desta diversidade. Ao dar voz a um narrador em primeira pessoa, um tipo popular e marginal que se serve da simplicidade para narrar casos cotidianos, a picaresca cria um anti-herói que se opõe aos idealizados protagonistas das novelas de cavalarias, decisivo para a origem do romance moderno. Sua descendência, como se sabe, é extensa.
A seleção de traços que comporiam este modelo não é tarefa das mais fáceis. Como González mostra, em sua resenha exaustiva da crítica da picaresca clássica, mesmo neste âmbito restrito, a discordância é grande. Ora o conceito se substancializa excessivamente, ora peca pelo formalismo, perdendo-se na abstração. O autor busca a virtude no meio, concedendo importância ao foco narrativo (a pseudo-biografia) e à seriação de aventuras, mas mostrando seu complemento necessário na sátira social.
A trapaça como único meio possível de ascensão social do pícaro, um marginal, a valorização da aparência e o desprezo pelo trabalho estão ligados ao engessamento das classes sociais na Espanha dos séculos 16 e 17 e à ideologia da Contra-Reforma.
As premissas para o exercício de comparação entre as literaturas espanhola e brasileira em "A Saga do Anti-herói" são duas. Antes de mais nada, uma definição da picaresca que incorpora a auto-renovação como elemento estrutural do gênero, transgressivo por excelência.
A segunda, e mais frágil, é a que defende analogias contextuais entre a sociedade espanhola do século 16 e a organização social do capitalismo periférico contemporâneo. Aqui, o risco, nem sempre evitado, é o da simplificação descaracterizadora, decorrente tanto da distância das realidades aproximadas, como do fôlego panorâmico do trabalhado (um histórico muito bom da evolução e expansão dos pícaros literários e da crítica a respeito).
As semelhanças estão apenas indicadas e não convincentemente demonstradas a partir da análise da passagem dos elementos externos para a ordem do texto. Apesar do cuidado do autor, acaba escapando a especificidade da ordem/desordem embutidas na figura do malandro brasileiro (personificada no Leonardo das "Memórias" e em Macunaíma).
Assim, também a análise da neo-picaresca contemporânea dilui-se num confronto das obras lidas contra um modelo que, por mais que se evite, acaba reduzido à soma de elementos formais. A demonstração do parentesco convence, mas não afasta a impressão de que ele é remoto. Se não nos dá direito a herança, também não empana a menina dos olhos da malandragem local: o orgulho ambíguo de ter gerado seus próprios malandros.

Texto Anterior: FICÇÃO
Próximo Texto: Nepomuceno conta histórias de exílio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.