São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Nepomuceno conta histórias de exílio

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Há um mérito especial em vestir a resignação e a melancolia com elegância, em cobrir com lirismo as sequelas da incomunicabilidade, em pintar de tom sarcástico as grandes e as pequenas amarguras do cotidiano. Esse mérito, acima de tudo artístico, é o aspecto mais marcante de "Coisas do Mundo", novo livro do contista paulistano Eric Nepomuceno.
Escrever "paulistano", aqui, visa a cumprir um quesito meramente formal e biográfico. Pois a literatura de Nepomuceno, nesta como nas suas obras anteriores, é na verdade uma literatura de ausências e exílio, em que os personagens raramente estão nos seus próprios países ou em suas casas. Ao contrário, os ambientes predominantes nos seus contos são bares e hotéis, estradas, residências de veraneio, carros e aviões.
Exílio físico e geográfico, mas igualmente de "almas", por assim dizer. Em "Coisas da Vida" –o melhor conto do livro, apesar do título um tanto "déjà vu"–, por exemplo, tamanha é a desolação do personagem principal, que ele chega a sentir pena do seu próprio carro ao vê-lo solitário numa parte de um estacionamento.
Em "Bangladesh, talvez....", é a toalha branca que se joga no ringue quando o narrador relata, em primeira pessoa, o momento em que seus sonhos "desapareceram para sempre". São, obviamente, metáforas de figuras humanas deslocadas, por dentro e por fora.
Na verdade, nada parece dar certo para os personagens de "Coisas do Mundo". Seus entraves não têm a ver com a situação econômica de cada um; são mais o fruto de uma espécie de esgotamento, da falta de sentido e de perspectivas. Cumpridores de tarefas, eles se movem por forças externas que não aparecem claramente; às vezes em que procuram uma saída, não dominam o seu próprio trajeto.
E o pior: quase todos acreditam que será sempre assim e, talvez por isso, quando não encontram consolo nas "mentiras da memória", buscam de propósito o isolamento. "De alguma forma, entendo que o preço da lucidez é a solidão", diz-se em "Quando o Canário".
Não estamos, porém, diante de um livro melancólico ou do tipo baixo-astral. Com estilo enxuto e maduro, sem recorrer à toa a artificialismos formais ou às elucubrações saudosistas e enfastiantes que muitas vezes marcam trabalhos recentes de sua geração (o autor tinha 20 anos no fatídico 1968!), o que Nepomuceno nos mostra é um universo psicológico, necessariamente ambíguo, onde viver significa administrar amarguras, mas também, e a isso sua literatura serve com esmero, estabelecer desejos.
PS: Observação de um chato: o uso repetitivo de uma palavra forte e chamativa costuma retirar-lhe o devido impacto. Assim ocorre com "fúria" em Nepomuceno. O substantivo aparece excessivamente, tanto aqui como em "A Palavra Nunca" (1985). E nada indica que seja de modo proposital.

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