São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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A inflação brasileira e o Plano Real

JEFFREY SACHS; ÁLVARO ZINI JR.

JEFFREY SACHS e ÁLVARO ZINI JR.
Por diversos critérios, a inflação brasileira tem sido a mais intratável da história mundial. A duração dessa inflação elevada é sem paralelos: a inflação superou 50% ao ano todos os anos desde 1979, e tem estado no nível de dois dígitos desde 1957. Discutimos neste artigo a inflação brasileira e o prognóstico para o Plano Real.
Todo plano de estabilização bem-sucedido deve ter três componentes: 1) uma solução para o problema orçamentário crônico que quase sempre está na origem da inflação elevada; 2) um método para a eliminação dos elementos inerciais da inflação elevada, principalmente a indexação dos preços e salários; e 3) a introdução de uma ou mais "âncoras nominais" para o nível de preços.
Sem âncoras nominais, a inflação elevada pode reaparecer facilmente como resultado de profecias auto-realizadas (por exemplo, ataque especulativo contra a moeda) ou por comportamento oportunista das autoridades monetárias.
Todas as tentativas de estabilização no Brasil foram marcadas pela falta da necessária combinação desses três elementos.
A inflação elevada brasileira é peculiar em três aspectos. Primeiro, a inflação atual não é, principalmente, resultante de déficits públicos elevados, como se verifica pelas medidas disponíveis de déficit operacional. Déficits públicos altos certamente tiveram um papel determinante no início e duração da inflação elevada, mas não estão atrás da atual inflação. Embora, que fique claro nossa posição, ter o orçamento equilibrado é um pré-requisito importante da estabilização.
Segundo, o Brasil é marcado por uma inflação inercial particularmente forte, resultado do uso extensivo da indexação de preços e salários.
Terceiro, a oferta de moeda não provê uma âncora nominal, porque a base monetária (moeda em circulação mais reservas bancárias junto ao Banco Central) é uma fração muito pequena do PIB e o aparato regulatório permite a expansão endógena da moeda.
O Plano Real é uma tentativa engenhosa de enfrentar o problema da inflação inercial, mas é incompleto porque até agora não resolveu o desafio de estabelecer uma âncora à oferta de moeda. Após discutir alguns problemas de controle monetário e o Plano Real, esboçamos alguns passos de gestão monetária que seriam úteis para reforçar o programa de estabilização.
A base monetária tomada em relação ao PIB foi de apenas 0,8% em 1993 no Brasil, comparada com 6,1% nos Estados Unidos. Em parte, a baixa base monetária é uma resposta do mercado ao custo de manter moeda com uma inflação elevada. Em parte, no entanto, isso reflete a evolução das regulamentações bancárias para facilitar a fuga da base monetária. O sistema bancário foi encorajado a criar um eficiente sistema de depósitos a juro que permite aos detentores de moeda no Brasil escapar do uso da moeda ou reservas do Banco Central. Como resultado, os bancos comerciais, em vez do Banco Central, provêem quase todo o saldo para transações usado na economia.
A noção relevante de saldo para transações (isto é, moeda mais depósitos sobre os quais se podem passar cheques) no Brasil é formada por depósitos a vista mais as contas do FAF e as aplicações que funcionam relacionadas ou como o FAF (fundos de commodities e as outras contas incluídas no M2). Com efeito, todas essas contas são depósitos que pagam juros e sobre os quais se podem passar cheques; nos EUA essas contas são consideradas como M1.
Com o custo de inflação e com a alta liquidez dos depósitos tipo FAF, as famílias e as empresas no Brasil substituíram quase totalmente a moeda pelas contas do tipo FAF. Assim, os depósitos à vista são hoje principalmente um tipo de "float", um saldo temporário no intervalo em que o dinheiro é transferido para dentro e fora das contas FAF. Os depósitos à vista representaram apenas 0,8% do PIB no Brasil em 1993, comparados com 6,3% nos EUA.
No Brasil, os saldos para transações estão, assim, constituídos por uma moeda interna do sistema bancário (denominado "inside money"), desconectada da base monetária. A moeda de base é apenas 6,7% dos saldos para transações. Nos EUA, por contraste, a base monetária constitui 34% dos saldos para transações. Como resultado, a inflação brasileira tem sido elevada embora haja um nível muito baixo de senhoriagem (receita pela emissão nova de moeda) que está entre 2% e 3% do PIB.
Muitos outros países têm a mesma razão senhoriagem/PIB que o Brasil, mas com inflação na faixa normal. O ponto que se está fazendo aqui é que no Brasil a inflação pode ser alta mesmo se o Banco Central não emita muita moeda nova. Ademais, mesmo a baixa senhoriagem não reflete financiamento de déficit orçamentário nos últimos anos.
Em 1993, por exemplo, não houve expansão líquida de crédito do Banco Central para a economia doméstica, e, especificamente, nenhum crédito líquido ao Tesouro. A oferta de moeda cresceu em 1993 totalmente devido à acumulação de reservas.
Em nossa interpretação, o aumento da base monetária via acumulação de reservas é resultado da inflação em vez de sua causa. À medida que as firmas e as famílias tentam preservar o nível de seus saldos reais de moeda, mas com a inflação ainda elevada, se não há expansão doméstica de crédito, há um incipiente excesso de demanda por moeda, posto que o crescimento da base monetária terá ficado atrás da inflação. Isso então tende a elevar as taxas de juro e, por esse meio, induzir um influxo de capital do exterior.
O Banco Central intervém no mercado de divisas para defender a taxa de câmbio real. As reservas fluem para o Banco Central e a base monetária cresce. Como resultado, observa-se uma rápida expansão de reservas; as reservas internacionais do Banco Central cresceram de US$ 8 bilhões em outubro de 1991 para US$ 38 bilhões em maio de 1994. (Estes números também implicam que não há escassez de oferta de poupança privada para o governo).
Sumarizando nossos argumentos, a inflação de 1993-94 está sendo conduzida por três fatores: 1) inércia na dinâmica preço-salário; 2) um nível muito baixo de demanda por base monetária; e 3) aumentos endógenos da base monetária via balanço de pagamentos.
O Plano Real tenta resolver os aspectos inerciais da inflação através da redenominação dos contratos em URVs, a introdução de uma nova moeda e a proibição da indexação dos salários. Ele também objetiva fortalecer o controle fiscal através de medidas de austeridade orçamentária. Mas o plano permanece como uma estratégia incompleta de estabilização, principalmente porque ainda não enfrentou o problema institucional do controle monetário.
A questão importante é se a introdução do real irá levar a uma estabilização duradoura, ou meramente à redução de curto prazo na inflação, seguida de um rápido retorno da inflação elevada. Do ponto de vista dos fundamentos, há chances para uma estabilização duradoura porque o déficit público é reduzido ou muito baixo.
Há, entretanto, três tipos correlatos de risco que não foram ainda afastados. Primeiro, e mais diretamente, pequenos incrementos da base monetária podem sustentar aumentos grandes da inflação. Portanto, sem mudanças nas regulamentações monetárias, o Brasil permanece vulnerável ao risco de pequenos déficits poderem reacender a inflação.
Segundo, sem essas mudanças, o governo irá continuar a ter pouca autodisciplina para evitar políticas inflacionárias, posto que os detentores de riqueza estão insulados dos custos da inflação.
Terceiro, o valor nominal das contas tipo FAF tende a crescer rapidamente como resultado de taxas nominais elevadas de juro. Suponha, realisticamente, que a inflação seja reduzida drasticamente no início do real, mas que as taxas de juros permaneçam altas devido às expectativas de inflação futura. Os saldos nominais, e por decorrência os reais, das contas tipo FAF iriam crescer rapidamente. Esse aumento nos saldos reais, por sua vez, iria deflagrar aumentos no consumo e, em pouco tempo, trazer déficits comerciais significativos.
Em nossa opinião, o Plano Real oferece um prospecto sério de estabilização da moeda sob duas condições. Mais obviamente, o lado fiscal deve permanecer equilibrado. Segundo, a regulamentação do sistema monetário deve ser ajustada a fim de permitir que o Banco Central readquira controle sobre a oferta de moeda. Sobre esse último ponto, oferecemos alguns pensamentos.
Primeiro, as contas tipo FAF devem ser eliminadas, permitindo que os depósitos sejam redirecionados voluntariamente para quatro tipos de opção: moeda, depósitos à vista, depósitos de poupança ou à prazo, ou aplicações finais em títulos públicos (sem acordos de recompra). Indivíduos que desejassem continuar a manter saldos líquidos no mercado monetário poderiam continuar a fazê-lo, mas estas aplicações não poderiam servir de saldo para transações. Uma parcela substancial das contas tipo FAF viraria depósitos à vista ou moeda.
Segundo, recomendamos a introdução do requisito de reservas para todas as contas à vista e de poupança a fim de reconstituir a base monetária. Sugerimos algo como uma taxa única de 20% de reservas sobre todos os depósitos. Com respeito à indexação de ativos financeiros, sugerimos eliminar a indexação em todos os tipos de papéis de menos de três meses.
Essas mudanças são difíceis de serem adotadas quanto a inflação é alta, mas elas são possíveis nos primeiros meses após a introdução do real, quando a inflação estiver baixa. Portanto, é importante que o governo use esta oportunidade para consolidar seu controle sobre a oferta monetária.
Em adição a essas medidas regulatórias, recomendamos ações dirigidas a aumentar a confiança na nova moeda. É necessário remover o mais possível o caráter discricionário da gestão monetária. O governo poderia anunciar sua determinação de manter a taxa de câmbio fixa pelos próximos seis (ou doze) meses de real, a serem seguidos por algum tipo de política de minidesvalorizações. É também desejável alterar a lei para dar independência substantiva ao Banco Central.
Essas sugestões, embora não sejam exaustivas, são todas política e administrativamente factíveis. Combinadas com a introdução de uma nova moeda, elas estabeleceriam as fundações para um período prolongado de inflação baixa. O teste real, entretanto, virá na arena política. O sistema político precisa aprender a resistir às pressões para aumentar o dispêndio público.

JEFFREY D. SACHS, 39, é professor titular da cadeira Galen Stone de economia internacional da Universidade de Harvard (EUA). Foi consultor dos programas de estabilização dos governos da Bolívia (1985-90), da Polônia (1989-91), da Estônia (1992) e da Rússia (1991-93).

ÁLVARO ANTONIO ZINI JR., 41, doutor em economia pela Universidade de Cornell (EUA), é professor livre docente da Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). Atualmente, é professor visitante da Universidade de Harvard (EUA).

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