São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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O último dos cordiais

CAIO TÚLIO COSTA

Um dos bons achados na história das idéias no Brasil é a teoria de que o brasileiro seria "o homem cordial". Foi desenrolada nos anos 30 por Sérgio Buarque de Holanda, o historiador, pai de Chico Buarque, o cantor. Essa noção de cordialidade não era dele, mas foi Sérgio Buarque quem lhe deu aparência, volume e brilho num livro clássico, "Raízes do Brasil", de 1936.
Sérgio Buarque morreu faz 14 anos mas a força desse conceito varou décadas. Ele explica, mesmo no sentido mais comum, o jeitão brasileiro. Para o historiador, a "lhaneza" no trato, a hospitalidade e a generosidade formam um aspecto bem definido do caráter nacional –eis aí a cordialidade.
Antonio Candido, outro homem que trata das idéias com inteligência, explicou que essa cordialidade não implica necessariamente a idéia de bondade. Indica a predominância dos comportamentos de aparência afetiva, cobertos de uma cordialidade aparente, natural, algo que se opõe ao ritual da polidez. O brasileiro não seria então polido, mas cordial.
Sérgio Buarque também relativizou, depois, seu próprio conceito. Talvez antevisse a violência, o estupor dos tempos de agora. Quem sabe, como já se disse, não quisesse passar por ingênuo. Por isso, explicou que mesmo a inimizade do brasileiro seria uma "inimizade cordial". Como ele mesmo escreveu, o Brasil não é fácil de entender, é difícil.
Põe difícil nisso. Sérgio Buarque não teve como ver –felizmente– o Brasil desses anos 90 para rever radicalmente seu conceito que tão bem cantou os brios do brasileiro por tanto tempo. Senhores antrópologos, historiadores e sociólogos: mentes à obra porque tudo mudou.
Hoje, a cada olhar atravessado, a cada briga de trânsito, a cada discussão no comércio, a cada estocada de um ladrão, a cada fuzilaria nos morros do Rio, a cada tiro disparado por alguém da nossa classe média, enfim, a cada minuto do dia esvai-se essa aparência de cordialidade.
Como que para provar o quanto podem ser vulneráveis os conceitos, o brasileiro enterra sua cordialidade na individualidade, arma-se para atacar (mas diz com hipocrisia que é para se defender) e parte para a luta contra ele próprio sem ter noção do quando se afunda e se violenta.
O último brasileiro cordial acabou-se há poucos dias. Chamava-se Antônio Carlos Valério e ocupou as páginas do noticiário policial pela maneira idiota pela qual foi assassinado. Ele saiu do trabalho e foi comer alguma coisa numa lanchonete do Itaim Bibi, bairro "bem" de São Paulo. Viu um fuzuê e foi cordial ao tentar acabar com uma discussão entre rapazes e moças. Tomou um tiro no peito. Somente um brasileiro de boa índole podia tentar algo assim. Foi barrado pela estultice.
Valério levou com sua morte a idéia do homem cordial. Deixou como herança para os que sobrevivem, e nós sabemos a que custo, a idéia triste do "brasileiro estúpido".

Ilustração: "Rumo à Península Azul", 1951-52, de Joseph Cornell.

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