São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Caindo na (e no) real

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Jornalistas em geral reclamam que a imprensa abandonou a reportagem nos últimos tempos. Leitores mais exigentes, idem. Lidos com atenção, os jornais exibem mais declarações, explicações, notas oficiais e desmentidos do que reportagens propriamente ditas. E colunas, muitas colunas. Editorias com assuntos de política e economia parecem ter apenas textos produzidos nos gabinetes do poder e das redações, e é difícil -cada vez mais difícil- encontrar ali o que o jargão interno dos jornais chama de "investimento numa pauta".
Semana passada, remando contra essa maré de burocratismo jornalístico, a sucursal de Brasília da Folha resolveu fazer reportagem e despachou o jornalista Gustavo Krieger para uma fazenda do senador José Paulo Bisol (PSB-RS), vice de Lula na chapa que disputa a Presidência da República. Até então, o senador vinha declarando que emendas suas ao Orçamento da União, reveladas numa denúncia, não beneficiavam a fazenda que fica em Buritis (MG), mas apenas atendiam reivindicações de políticos e da população local, representados por ele.
Krieger conferiu com seus próprios olhos, e revelou diante dos olhos de alguns milhares de leitores da Folha: uma das pontes para as quais as emendas destinam verbas favorece, sim, as terras de Bisol. A reportagem, publicada na edição de quinta-feira, tinha as fotos, os dados, os detalhes. Mereceu o nome de reportagem, e se transformou numa prova incontestável de que Bisol, mesmo que não tivesse a intenção de se beneficiar, deve explicações aos (e)leitores (há ainda a denúncia de que as emendas teriam valores superfaturados, o que só complica o caso).
Ao despachar um repórter para conferir "in loco" as denúncias contra o senador Bisol, a Folha fez exatamente o que os leitores esperam de um (bom) jornal. E, ao mesmo tempo, não fez mais do que sua obrigação. O jornal considerou que Bisol é vice do candidato mais bem colocado nas pesquisas de intenção de voto, e a julgar pela história recente do Brasil, pode até chegar à Presidência da República (Lula que me perdoe, não estou agourando sua saúde ou duvidando de sua honestidade, mas os dois últimos vices acabaram lá). A Folha poderia ter continuado a ouvir as declarações de Bisol sobre o caso, registrando-as diariamente em suas páginas. Preferiu fazer reportagem, e depois dela o caso mudou de perfil. Antes, Bisol podia dizer que as emendas não o beneficiavam. Depois, ficou impossível. O senador foi colocado diante dos fatos. Como se diz, caiu na real. Agora, o PT discute se ainda o quer como vice de Lula.
É por essas e outras que jornalistas e leitores sentem saudades da reportagem nos jornais.

A imprensa também caiu na real (melhor dizendo, no real), e passou a semana toda se desdobrando para explicar aos leitores como funciona a nova moeda. Publicou cartilhas e fez malabarismos com suas páginas (a Folha chegou a deslocar o noticiário de Mundo para o primeiro caderno, tirando espaço das notícias de Brasil, para acomodar melhor o Plano Real). Ofereceu ao leitor extensas listas com a conversão do dinheiro velho para o dinheiro novo. Ainda que tenha sido uma morte (muito) anunciada, a do cruzeiro real acontece num clima de confusão, graças à conversão em valores quebrados que o governo impõe aos brasileiros.
Até o momento em que escrevo esta coluna, a imprensa tem se mantido dentro de padrões de imparcialidade diante do novo plano –um plano que pode eleger um presidente. É verdade que, na noite de sexta-feira, o "Jornal Nacional" já demonstrava uma certa euforia em relação à nova moeda, chamando-a repetidamente de "estável" (também até o momento em que escrevo esta coluna, nada nem ninguém garante que o plano vai mesmo dar certo e o real será, enfim, a nossa moeda estável). Mais: o noticiário oferecido a milhões de brasileiros incluiu uma reportagem feita em Londres, sobre como se vive numa economia sem aumentos de preços. Num esforço de reportagem, o "Jornal Nacional" conseguiu entrevistar um sujeito que garantia ter visto recentes mudanças de preços num mercado londrino –mudanças para baixo.
Que torcemos, todos, por alguma estabilidade no Brasil, é inegável. Mas a imprensa não pode ceder à tentação de assinar em branco o cheque do Plano Real, especialmente porque ele envolve uma candidatura ao Palácio do Planalto. Sugiro ao leitor que redobre sua atenção para eventuais excessos nos próximos dias. E que cobre esses excessos da imprensa. Mesmo porque, para dar certo e ir além das eleições, o plano precisa da fiscalização da sociedade. Quem melhor do que a imprensa verdadeiramente independente e sem compromissos para fazer isso?

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