São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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O Brasil visto de longe

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O norte-americano Thomas Skidmore não é daqueles intelectuais que se deixam levar, quando se debruçam sobre a história de uma outra nação, por preocupação e questões que dizem respeito mais à realidade de seu país de origem do que ao tema tratado. Mesmo quando recorre a fatos da sociedade americana –como, por exemplo, à segregação racial vigente antes do Ato de Direitos Civis (1964)– para avaliar a inveracidade da tese, mundialmente difundida no pós-guerra, da existência de uma "democracia racial" no Brasil, tal contraposição se dá nos quadros –explicitados e justificados pelo autor– de uma história comparativa. Além disso, a sua atenção aos temas, aos métodos de estudos e à bibliografia prevalecentes em nosso país faz com que o título de seu último livro, a coletânea de artigos " O Brasil Visto de Fora", indique antes uma postura teórica do que uma posição geográfica ou algo afim à sua condição de estrangeiro.
Longe da mescla de subjetivismo e diletantismo, predominante nos relatos de viagem, os textos de Skidmore obedecem às exigências tradicionais do saber científico: à busca de neutralidade e objetividade, à manutenção de uma certa distância, de uma posição de exterioridade em relação ao objeto de estudo.
Se, por um lado, a camisa de força das regras acadêmicas confina seus artigos ao espaço rarefeito dos papers, impedindo-o sequer de perceber a novidade formal, o caráter ensaístico, dos livros que analisa, e também o leva, noutro registro, a um rigorismo extremo que não hesita em censurar Gilberto Freyre, por sua heterodoxia temática e metodológica, por outro lado, essa preocupação com a apreciação isenta da história brasileira não o impede, ou melhor, parece confirmá-lo na necessidade de tomar posições corajosas e críticas frente a muitos dos nossos dogmas intelectuais.
O livro compõe-se de três partes que congregam artigos que podem significativamente ser classificados segundo especialidades acadêmicas distintas: a primeira parte tematiza a identidade nacional sob o prisma da história das idéias, a segunda enfoca a questão racial segundo o ângulo da história social e a última confronta Brasil e Argentina após 1945 na chave da história político-econômica comparada.
Na primeira parte, Skidmore estabelece um panorama da indagação acerca da identidade brasileira a partir das atitudes intelectuais com relação aos Estados Unidos de pensadores como Monteiro Lobato, Vianna Moog, Moniz Bandeira etc. Este inventário é relevante não só porque revela que os Estados Unidos, a partir de 1889, passam a ser encarados como um fator decisivo na construção da nação brasileira, seja enquanto presença ativa ou como modelo, mas também por mostrar de que modo as teses acerca da especificidade da sociedade brasileira devem muito a um confronto comparativo com a idéia que aqui se tem da sociedade americana. No universo restrito da seleção de Skidmore –enfraquecido pelas ausências surpreendentes de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado (cuja "Formação Econômica do Brasil" tem, aliás, como um dos seus eixos principais a comparação da colonização brasileira com a norte-americana)– destacam-se os nomes de Gilberto Freyre e Eduardo Prado.
Freyre toma a "ascensão e queda da família patriarcal" como chave para a compreensão da história brasileira. Apesar de ter criado um modo próprio de escrever e conceber a história, inspirado nas técnicas da antropologia social, a obra de Freyre, na avaliação de Skidmore, acaba sendo prejudicada não só pela sua heterodoxia –a sua tentativa inicial de interpretar a história da família em termos de história social desemboca numa interpretação da história social brasileira em termos de família–, mas principalmente pela resposta positiva que dá à questão da miscigenação racial. A reação de Freyre à sua vivência da segregação racial no sul dos Estados Unidos está na origem, segundo Skidmore, de sua celebração da singularidade do Brasil. Eduardo Prado, um militante católico, monarquista e anti-americano da passagem do século parece ter sido mais consciente. Pouco afetado pelas idéias positivistas então predominantes, Prado desvia a questão da identidade nacional da esfera cultural, tomando-a em sua dimensão política, o que torna o seu nacionalismo, aos olhos de Skidmore, mais frutífero e inteligente.
Embora a preocupação maior de Skidmore seja substituir, na discussão sobre relações raciais no Brasil, a avaliação subjetiva, as opiniões, pautadas na evidência anedótica e não quantitativa, pela análise objetiva de dados institucionais –o que demonstra com clareza que raça é uma variável significativa na determinação das oportunidades de vida dos brasileiros–, ele não despreza o nosso debate acerca do caráter nacional. Afinal, uma longa série de ensaios tematiza, ainda que de modo dissimulado, as relações raciais, ocultando a complexidade do nosso sistema de classificação racial numa ideologia reveladora da auto-imagem da elite brasileira. O ideal operativo na nossa elite desde 1920, a crença numa "democracia racial" e no "branqueamento", é duplamente desmascarado: enquanto racionalização da impossibilidade prática de impor a endogamia e a segregação devido ao grande contingente de negros livres existentes desde a colônia e enquanto imagem errônea e enganadora da situação racial brasileira. Mais ainda, dado o dinamismo dos sistemas de perpetuação racial, Skidmore não hesita em questionar um dos mitos mais caros da nossa auto-imagem: a situação dos negros no Brasil é, hoje, sem dúvida, tanto no terreno legal quanto no social, pior que a situação do negro norte-americano.
Na terceira parte, Skidmore investiga a possibilidade e os limites da formulação de políticas nacionais próprias em dois modelos semelhantes e distintos –os governos populistas de Vargas e Perón. A mudança de tom, de enfoque e, principalmente, de bibliografia (as fontes, outrora majoritariamente brasileiras, são substituídas por textos em inglês de especialistas estrangeiros ou brasileiros) refletem uma mudança significativa –também presente na produção universitária brasileira– da visão acadêmica americana do Brasil. Nosso país deixa de ser visto como uma exceção, como a única nação de língua portuguesa numa América espanhola e passa a ser visto como membro de um futuro bloco cujas partes possuem, pelo menos no campo político e econômico, similitudes inegáveis.

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