São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Identidade e fluidez na sociedade moderna

PAULA MONTEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Projeto e Metamorfose", o mais recente livro de Gilberto Velho, aponta, já no título, para um dos mais pungentes temas da reflexão contemporânea: esse impensado da ideologia moderna que nos habituamos a conceber como indivíduo. Em particular, o autor se pergunta como a unidade que o indivíduo representa é capaz de permanecer idêntica a si mesma numa sociedade que a obriga, e valoriza, mudanças permanentes. Para pôr em uma equação esse aparente paradoxo - que associa num mesmo locus duas forças sociais contraditórias, o projeto e a identidade -, o autor lança mão da metáfora da metamorfose.
A metamorfose seria o processo social pelo qual, através da movência contínua entre códigos, o indivíduo se reconstrói de maneira permanente. Na verdade esta noção é bem conhecida dos estudiosos das sociedades não-ocidentais; nelas os limites entre os vários níveis da experiência - o mundo natural, o humano e o sobrenatural -, são, muitas vezes, fluidos e flexíveis, permitindo a mutação de homens em plantas, animais e deuses. Essas metamorfoses podem se manifestar em vários domínios, tais como nas viagens xamânicas, na cosmologia, na construção da pessoa, nos rituais, etc.
Embora reconhecendo a distância que separa esse tipo de organização social do nosso, o autor recorre a essa percepção radical de mudança que a noção de metamorfose implica, para caracterizar o trânsito permanente entre distintos papéis a que a vida em nossas sociedades nos obriga. O indivíduo é, mas não é, o mesmo quando escolhe mudar de país, tomar drogas, aderir a uma religião, etc.
A mudança individual é pois a preocupação que recorta o conjunto de onze ensaios que compõe o livro. Apesar de sua diversidade temática - literatura, política, religião, cultura de massas -, pode-se perceber, em cada um, a tentativa de aprender a especificidade essencial das sociedades contemporâneas. Qual seria ela?
Percorrendo os diferentes capítulos, percebe-se que em todos, a fragmentação é a imagem, recorrente. Com efeito, parece difícil construirmos uma teoria da ação social quando os comportamentos individuais estão em um permanente vai-e-vem entre mundos antagônicos. Essa constatação tem consequências fundamentais para os que pretendem fazer uma antropologia das sociedades ocidentais: a antropologia nasceu e desenvolveu-se estudando sociedades nas quais os mecanismos socializadores básicos -a família, a etnia, o parentesco, a religião, etc.- , garantiam a relativa homogeneidade de experiência social.
Ora, sendo o contraponto inverso dessas sociedades que foram chamadas de holistas, nossa vida social quase anulou essas âncoras como referência para a identidade. Nessa pulverização da experiência comprometeu-se a possibilidade de uma compreensão mais global da sociedade. Deveria o antropólogo dedicar-se a essa tarefa de Sísifo que é acompanhar uma a uma essas biografias anônimas e particulares para captar-lhes o sentido?
Para responder a esse problema, a propor uma antropologia das sociedades complexas, Gilberto Velho retoma duas vertentes clássicas do pensamento social: o perspectivismo de Georg Simmel e a fenomenologia de Alfred Schulz. A partir de ambos Gilberto Velho procura pois, lidar com a problemática da unidade na fragmentação. Caberia à antropologia por um lado ocupar-se e explicar o modo como as pessoas transitam entre as alternativas que a sociedade lhes dispõe; por outro, compreender os "projetos" individuais a partir do modo como as pessoas definem a realidade em que vivem.
Vemos pois, que o livro de Gilberto Velho preocupa-se com questões-chave que estão até hoje em aberto na reflexão antropológica. Sua grande virtude é nomeá-la e propor um caminho de análise. No entanto, pelo próprio formato do livro, composto por conferências e artigos realizados ao longo destes últimos dez anos, o autor não teve a oportunidade de enunciar os dilemas postos nas suas próprias escolhas teóricas.
As tentativas que o autor faz nessa direção - ao descrever um episódio em que um preto-velho desce sobre um senhor em plena av. Copacabana no Rio de Janeiro, ou ao relatar a experiência de uma jovem açoriana em Cambridge, por serem justamente exemplos de uma situação possível, apenas ilustram suas proposições sem que os processos sociais que tornam essas "escolhas" possíveis (ou inteligíveis) se torne evidente.
É claro que parte da dificuldade deve ser creditada à ausência de um balanço crítico das teorias tomadas como referência. Sabemos que para a fenomenologia, a vida social resulta da ação e vontade de atores individuais para os quais o mundo é dado como imediatamente familiar e significante. A contribuição dessa perspectiva está no reconhecimento de que a experiência comum está implicada na produção da sociedade. No entanto, ela perde de vista as determinações mais estruturais, acabando por reduzi-las à resultante da agregação das estratégias individuais.
Sem a análise de como os atores construíram as categorias que põem em ação não se pode compreender os princípios que organizam o próprio trabalho de produção simbólica da realidade. Sem uma análise histórico-social que explique a conformação singular de uma dada sociedade, a noção de "campo de possibilidades" permanece apenas referencial, já que não é possível saber que lugares estão presentes nesse campo, como surgiram, como se relacionam entre si, e mais, como as estratégias individuais perpetuam ou desafiam essa configuração objetiva.O próprio autor enfatiza a importância da abordagem histórica na compreensão das alternativas que uma sociedade constrói para si. Sem ela, torna-se impossível saber entre que e o que as pessoas escolhem ou transitam numa sociedade específica, qual sua margem de manobra e iniciativa. Fica-se deste modo reduzido à conhecida teoria dos papéis sociais para a qual os indivíduos são atores cujo comportamento está definido de antemão pelo script social das instituições a que pretencem.

PAULA MONTERO é professora de antropologia na USP

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