São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Figurações da ausência

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muitos leitores de Manuel Bandeira terão sido cativados pelo imediato encantamento e pelo poder de permanência de sua poesia. É um poeta que nos oferece muito, ao nos pedir tão pouco: só a sensibilidade mínima que se abra ao recolhimento das confissões íntimas e das súbitas epifanias, dos trabalhos da memória e das cenas urbanas devassadas pelo olhar lírico.
A imediatez e a permanência fazem dos poemas de Bandeira genuínos lugares poéticos, espaços recortados e nítidos, que a cada visita nossa confirmam-se como centros da expressão lírica. Tal força de presença se impõe sobretudo quando a linguagem se corporifica em fala aparentemente prosaica e dá voz definitiva ao que se extinguiria enquanto silenciosa circunstância do cotidiano.
É em vista dessa presença quase corporal do poeta, alheio ao hermetismo e à obliquidade, que pode resultar intrigante o título do estudo de Yudith Rosenbaum: "Manuel Bandeira: uma poesia da ausência". Que "ausência" seria esta, anunciada como fundamento de uma arte que joga tudo no colóquio, na particularização e na epifania?
Já às primeiras páginas do livro o leitor saberá que, com "ausência", Yudith estará se referindo a temas e a processos da poesia de Bandeira. Temas: a infância, a distância e a morte –tópicos da falta, das carências que fundam a melancolia e tendem a fixar o sujeito em obsessões regressivas. Processos: a sublimação, a elaboração compensatória e a busca dos símbolos que dêem um lastro de sensorialidade ao que evanesceu ou nunca será.
Assim, mobilizado pelo sentimento da falta, Bandeira "recriaria um mundo perdido", "atualizando cenas, personagens e sensações já findas", "encontrando formas sadias de confrontar-se com suas perdas, fixações e percepções –conduzindo-se da disposição melancólica para uma elaboração do luto mais do que libertadora".
Estas palavras finais do estudo de Yudith condensam o caminho de uma leitura internamente coerente, marcada pela ação decisiva de conceitos da psicanálise (Freud e Lacan). E aí surge a questão que talvez tenha angustiado a própria autora, no percurso do trabalho: até onde podem levar conceitos como sublimação, elaboração e pulsão na interpretação da poesia?
A questão se torna particularmente aguda no caso de Bandeira. Como sua poesia dispensa o artifício de uma persona mais evasiva ou problemática, há o risco de se identificar como motivações profundas o que já está confessado nos poemas (que valem, aliás, pela depuração e beleza do que se particulariza a cada instante, e não pelo confessional em si mesmo). Há na tristeza estóica e nas raras alegrias do poeta aquela paz que acompanha a lucidez de um indivíduo fortalecido em seus próprios domínios ("sou poeta menor, perdoai"), convicto de que símbolos e metáforas podem ser expressões mais diretas (e não "deslocamentos") das nossas verdades.
Creio que a designação aplicada ao processo geral da poesia de Bandeira –"figuração da ausência"– tem, de um lado, validade universal no campo da poesia lírica moderna, mas no caso singular do poeta de Pasárgada tem também a impropriedade de dar ênfase a subterrâneos sobre os quais, precisamente, a lucidez se asssentou, tornando-os imagens límpidas.
Sim, há na boa crítica um ganho de consciência com o qual o próprio artista não precisa estar compromissado –não, ao menos, no nível de compromisso que é do crítico. No livro de Yudith há belas formulações, como quando se refere ao "aprendizado da finitude" ou quando aponta para aquela impressão de silêncio que "transcende a mera quietude", traduzindo-se como "exercício fundo da atenção para o essencial". Se não estou enganado, há nessas formulações desdobramentos muito sugestivos para um estudo do estilo bandeiriano –desdobramentos que a autora pouco perseguiu nas muitas análises de poemas.
Ao levar as imagens da poesia de Bandeira às origens das carências essenciais, o estudo de Yudith arrisca-se a "explicar", no âmbito dos motivos e das experiências íntimas, os afetos de cuja frustração e em cujo deslocamento nasceram aquelas imagens. Parece-me que a questão relevante seria: como lograram essas imagens universalizar-se em âmbito coletivo?
Yudith, eu, nós todos que amamos a poesia de Bandeira sabemos que, mais do que querer "a delícia de poder sentir as coisas mais simples", o poeta de fato a sentiu e nos fez sentir. Seu "querer" tornou-se, para nós, um fato poético.
Yudith apostou nesse "querer", para interpretar o fato; eu preferiria começar pela idéia de que o fato já interpretou esse "querer", e nasce daí a serena força da poesia de Manuel Bandeira.

Texto Anterior: Identidade e fluidez na sociedade moderna
Próximo Texto: Selva, ciúme e monotonia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.