São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Meandros da edição francesa de Freud

PAULO CÉSAR DE SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A psicanálise teve um destino peculiar na França, e naturalmente as obras de Freud partilharam esse destino. Pois nunca houve uma edição uniforme e completa em francês, como em outras línguas européias.
Apenas há alguns anos teve início a publicação das "Oeuvres Complètes", de que saíram até o momento quatro volumes, de um total de 20. Dirigida por Jean Laplanche, André Bourguignon e Pierre Cotet, esta é, sem dúvida, a mais ambiciosa tradução das obras de Freud. Tem a ambição de ser a mais fiel, a mais bela, a mais bem cuidada edição do mais discutido pensador de nosso tempo. Para alcançar este fim, conta com enormes recursos financeiros e mobiliza dezenas de especialistas: não apenas tradutores e editores, mas também germanistas, lexicógrafos e psicanalistas.
Os quatro volumes até agora lançados pela Presses Universitaires de France foram o terceiro, compreendendo textos de 1894-99; o 8º, com obras de 1914-15; o 16º e o 17º, com trabalhos de 1921-25. Vamos proceder a um breve exame desta edição, verificar até que ponto ela se mostra à altura da sua ambição de fidelidade, o que implica examinar o que entende por fidelidade, a postura ou pressuposição que a orienta.
Para isso é valioso o volume }Traduire Freud (Paris, PUF, 1989), de autoria dos três diretores da edição. Ele contém a "doutrina de tradução", uma seleção de termos técnicos comentados e um exaustivo glossário freudiano. A primeira parte desse livro, que busca fundamentar teoricamente a tradução, foi publicada entre nós pela Martins Fontes, com o título de }Traduzir Freud. Ela corresponde a apenas 70 páginas do original (de um total de 380). Embora assinada conjuntamente, foi redigida por Jean Laplanche, que é o diretor intelectual dessas Obras Completas.
Após uma breve menção dos obstáculos vencidos para se chegar a esta primeira edição completa em francês, }Traduzir Freud tem início com a declaração de que esse projeto é independente de qualquer influência institucional. Portanto, diz Laplanche, "em nenhum momento consideramos o que o texto se tornou nas mãos de seus exegetas ou de seus praticantes, oficiosos ou não".
A prova do estrangeiro
Ao enunciar os "princípios gerais" de sua tradução, Laplanche destaca }A Prova do Estrangeiro, Cultura e tradução na Alemanha romântica, de Antoine Berman (Gallimard, 1984), como importante referência teórica. Interessa-lhe o modo como Berman contrasta a teoria alemã e a prática francesa da tradução –que seria bem ilustrada pela seguinte frase de Schlegel: "... é como se eles desejassem que cada estrangeiro, no país deles, se comportasse e se vestisse segundo seus costumes, o que os leva a nunca conhecer realmente um estrangeiro".
A concepção adotada na nova tradução é exatamente o oposto dessa, na medida em que não busca "domesticar ou aclimatar o texto para fornecer uma espécie de análogo dele", aceitável para o espírito francês. "Ela permanece incessantemente o mais perto possível do texto, para tentar restituir ao máximo suas inflexões, suas particularidades estilísticas, semânticas, conceituais".
Esta tradução é aquela que se submete a "I'épreuve de L'etranger" (título do livro). Ela se opõe àquela tradicional, denominada de "etnocêntrica". Ela não procura assimilar, descaracterizando, mas incorporar, presentificando, a estranheza ou estrangeiridade do texto. E de que modo pretende atingir isso? Pelo compromisso intransigente com a literalidade; mediante o apego ao pé da letra.
Daí se ridicularizar a noção comum de que a tradução que "recende" tradução é ruim. Pois a sua autenticidade estaria em não fazer esquecer que "acolhe a escrita de uma outra língua". Logo, ela não poderá deixar intocada a língua de chegada, devendo contribuir para enriquecê-la: "numa tradução que consegue se impor como obra, a estranheza de hoje é o que amanhã será admitido por todos".
Estes são, resumidamente, os princípios que nortearam a tradução laplanchiana de Freud. Eles resultam (culminam) na seguinte fórmula, que me parece altamente discutível: "traduzir Freud inventando, modelando para ele, não um certo francês 'germânico', mas um 'francês freudiano', utilizando os recursos do francês da mesma maneira que Freud utiliza os do alemão".
A ênfase no significante
Para exercer o que entendem por fidelidade, Laplanche, Bourguignon e Cotet levam às últimas consequências o que podemos designar como o "princípio da homogenia" em tradução: traduzir um termo sempre pelo mesmo equivalente. Eles estendem essa orientação às palavras compostas, buscando conservar a todo custo o significante –"jamais apagar a pista do significante" é o seu lema.
Em princípio, não há como discordar do esforço em manter a homogenia ou univocidade da tradução, um princípio elementar, não apenas no caso de obras de pensamento. O problema surge quando se observa que nem sempre o equivalente formal de um termo alemão tem significado correspondente ao original. Ou seja, um termo pode ter vários sentidos ou nuances de sentido, segundo o contexto onde se encontre.
Alma e psique
Tomemos a palavra }Seele', a célebre "alma" defendida por Bruno Bettelheim em }Freud e a Alma Humana. Em sua crítica à }Standard inglesa, Bettelheim questionou a versão de }Seele para }mind, que seria simplista e limitadora, denotando apenas o aspecto intelectual da psique.
Laplanche vai além: distingue terminantemente a "alma" da "psique", apesar de Freud afirmar claramente que as vê como sinônimos, sendo "psique" o vocábulo grego para "alma". "Seele", diz Laplanche, "não é mais nem menos romântica, mística, filosófica ou religiosa que a palavra 'âme' em francês". O hino religioso que diz "Minha alma louva e celebra..." ("Meine Seele rhmt und preist...") seria ilustração disso. A citação deste hino se encontra num ensaio de 1984, "Clinique de la Traduction Freudienne" (L'Ecrit du Temps nº 7), que em muitos pontos prenuncia -e em outros complementa- o texto teórico de }Traduire Freud.
É importante conservar esse termo, com suas conotações populares e religiosas, diz ele, e diferenciá-lo do termo clássico, abstrato e de ar mais científico. Naturalmente a diferenciação deve ser estendida aos adjetivos }seelisch e }psychisch ("anímico" e "psíquico"), mais usados que os substantivos de que derivam, e as formas compostas como }Seelenapparat, que segundo Laplanche não soa mais estranha em francês ("appareil d'âme") do que em alemão.
Sobretudo, a "alma" deve ser mantida porque "é o fio condutor que permite a Freud mostrar como os 'processos anímicos' conscientes e inconscientes se acham projetados numa representação 'metafísica' da alma, e propor à psicanálise a tarefa inversa de 'transpor a metafísica em metapsicologia', ou 'recolocar na alma humana o que o animismo ensina sobre a natureza das coisas' " (p. 54; mesmas palavras à p. 77, desta vez com a indicação bibliográfica da citação de Freud: GW 9, 112).
Certamente isto é o que Freud se propôs (também o que Nietzsche quis empreender, de modo não tão sistemático: cf. }Além do Bem e do Mal, .... 12, 19, 230), mas pode-se perguntar se esse fio condutor tem de ser absolutamente de natureza formal, se o leitor perderia realmente o fio da meada, caso deparasse com "aparelho psíquico", por exemplo, em vez de "aparelho anímico".
Vejamos a seguinte frase do }Homem dos Lobos: "Nossa estranheza vem de que sempre nos inclinamos a tratar os processos anímicos inconscientes tal como os conscientes, e a esquecer as diferenças profundas entre os dois sistemas psíquicos" (pág. 110, cap. 8). Não me parece haver dúvida de que os dois termos são intercambiáveis, tanto aqui como em outros lugares, e que a escolha de um ou outro obedece a razões de estilo e sonoridade, que nos levam a sentir como estranha ou como aceitável determinada combinação.
A "alma" de Freud
É possível que }Seele não corresponda tão exatamente a "alma" como desejaria Laplanche, ao menos nos escritos de Freud. Cuidando desta possibilidade, vamos procurar indícios de "alma" na Viena de Freud –ou mais precisamente, do que se entendia por "alma" no ambiente linguístico e cultural em que ele viveu.
Em cartas a Fliess, datadas de agosto de 1898, ele comenta a leitura de um livro intitulado }Grundtatsachen des Seelenlebens, que literalmente quer dizer "Fatos Fundamentais da Vida Anímica". Como observam Neil Cheshire e Helmut Thomã (na }International Review of Psycho-Analysis, 18, p. 430; deles é a indicação dessas cartas), Freud não estava buscando aconselhamento espiritual nessa época (estava escrevendo a }Interpretação, como a gente sabe), e nesse livro ele encontrou algo sobre a relação entre processos conscientes e inconscientes. Em outra ocasião ele se refere a mais um livro, }Der Aufbau der menschlichen Seele, "A Estrutura da Alma Humana", cujo subtítulo é "um esboço psicológico".
Outro modo de indagar o que Freud entendia por }Seele' seria checar as soluções que adotou para os termos equivalentes em inglês e francês, nos livros que traduziu dessas línguas: um volume de John Stuart Mill, dois volumes de Charcot e dois de Bernheim, editados entre 1880 e 1892.
Um cotejamento dessas traduções freudianas –estas sim, são "freudianas"– foi feito por Michèle Pollak-Cornillot (na }Revue Française de Psychanalyse, 4/1986). A amostra que ela fornece é reveladora. Freud traduziu }l'âme humaine por }menschlicher Geist (lit. "espírito humano"), }psychologie nouvelle por }neue Seele, }conditions mentales por }Seelenzustand ("estado da alma"), }l'organe psychique por }Seelenorgan.
Na versão de Stuart Mill ele usou várias vezes }Geist para }mind, quando a idéia era de forças intelectuais, e recorreu a }generous mind para }grossmutige Seele. Décadas depois, em 1926, ele traduziu um capítulo de }O Inconsciente, de Israel Levine (Anna foi a tradutora do restante do livro), e na sua versão encontramos }Beziehung von Leiblichem un Seelischem para }psycho-physical relation.
Laplanche e seus colaboradores não se interessaram por esse tipo de pesquisa, e já sabemos qual seria a sua resposta a isso: ele afirmou que não se pode invocar o testemunho de Freud para alternar }seelisch e }psychisch, pois "a sinonímia mesma se efetua sobre um fundo de diferença (sic), e um autor não poderia ser o único juiz das diferenças no seio de sua própria língua". O único juiz, presume-se, deveria ser um comentador chamado Laplanche...
Compostos e }doublets
}Appareil d'âme, como versão de }Seelenapparat, é exemplo da literalidade no tratamento dos compostos. Em alguns casos, chega-se a utilizar pontos entre as partes constituintes da palavra, para marcar que se trata de um composto no original. Isso quando o adjetivo, no contexto francês, pode torná-lo ambíguo. Assim, }manifester Trauminhalt é vertido como }contenu du rêve manifeste (p. 33 do vol. 13), com pontinhos entre }contenu e }du e entre }este e }rêve, a fim de deixar claro que }manifeste qualifica o conteúdo e não o sonho (outros exemplos: pp. 84, 109, 111).
Esta convenção arbitrária, alheia ao sistema da língua, mostra justamente a não-utilização de recursos do francês. Pois a solução mais adequada, mais em sintonia com uma língua romântica de natureza analítica, seria deslocar o adjetivo para junto do substantivo de que é atributo: "conteúdo manifesto do sonho".
A orientação de registrar ao máximo as diferenças (sublinhando-as ou inventando-as, em caso de dúvida) se estende aos chamados }doublets, isto é, as palavras sinônimas ou quase-sinônimas –uma das quais é, com frequência, de origem grega ou latina, e a outra, germânica. Os novos tradutores franceses utilizam sempre dois termos distintos. Quando não têm como fazê-lo, vão ao extremo de aplicar um asterisco à palavra, para fixar um dos dois sentidos originais.
Pode não se tratar de dois sentidos, na verdade, mas de duas nuances. Deste modo, chose* traduz }Ding, ficando chose reservada para }Sache. A diferença entre as duas é que, enquanto }Ding designa sobretudo as coisas concretas, Sache é usada para "coisa" em sentidos mais amplos: "questão, negócio, assunto, etc." (como em português), possuindo também, secundariamente, o significado de "causa". Um falante de português ou francês percebe naturalmente esta variação semântica, porque não desconsidera o contexto.
Na "Terminologie Raisonnée", Laplanche tenta justificar a distinção. Estas "ressonâncias muito diferentes" (sic) dos dois termos, e a sorte que }das Ding teve nos escritos de Lacan e seus discípulos, levaram-nos ao uso do asterisco. Notemos de passagem que isto faz cair por terra a declaração inicial de }Traduire Freud, já mencionada, de que não se deixaram influir pelo destino dos textos de Freud nas mãos dos exegetas.
A paixão pela literalidade se manifesta igualmente na criação de neologismos: }désirance, }désaide, }névrose de contrainte ("desejância, desajuda, neurose de coerção") são apenas alguns deles, que despertaram controvérsia na França. São artificialismos que decorrem de uma concepção equivocada do uso linguístico, e da não consideração de diferenças essenciais entre o alemão e o francês. Mas não é possível examiná-los aqui. O que foi mostrado deve bastar para concluir que Laplanche & Cia. estão desperdiçando a oportunidade de fazer a mais bela e mais fiel tradução das obras de Freud.

ONDE ENCONTRAR: as traduções em francês das obras de Freud podem ser encomendadas à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011 231-4255)

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