São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Selva, ciúme e monotonia

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Sexo, voyeurismo, ciúme, tédio, incesto, decadência, ganância, fracasso, morte, hipocrisia... Desde sua estréia ("Os Indiferentes", 1929), Alberto Moravia (1907-1990), um dos maiores escritores deste século, não abandona esses problemáticos assuntos.
Em "A Mulher Leopardo", lançado após sua morte e agora publicado no Brasil, o fardo escolhido é o do ciúme, sentimento-tema que pode ser interpretado também como um pretexto ou uma metáfora para que o autor se eleve a uma "meditação existencial" mais ampla, como afirma o posfácio à obra, assinado por Enzo Siciliano.
Dois casais italianos –Lorenzo e Nora, Ada e Colli– partem em viagem ao Gabão. Ali chegando, Nora se envolve abertamente com Colli. Ada tenta fazer o mesmo com Lorenzo, ambos vítimas de um ciúme escaldante face aos respectivos cônjuges. Enquanto Colli e Nora se aproximam um do outro com um prazer indisfarçado, só se vê hesitação e desencontro entre os outros dois membros do quarteto.
Esbelta e indiferente, Nora comporta-se com uma ambiguidade felina –é ela a "mulher leopardo"– que desarma o seu marido. Aos poucos, o desnorteio de Lorenzo e sua impotência face a essa situação inesperada e enigmática –acentuados pelo fato de ele ser jornalista na empresa da qual Colli é dono– acabam dominando a novela, até que uma morte encerra o enredo, sem pôr fim, porém, à insegurança que o atormenta.
Sabe-se que, entre os autores consagrados, Moravia pertence ao grupo dos que preferem ir direto ao ponto. E o faz tão incisiva e ansiosamente, com tamanha precisão, que muitos episódios ou diálogos de seus livros, apesar dos temas "realistas", chegam a parecer estranhamente inverossímeis.
Por essa razão, tachado já de neo-realista ou de existencialista "avant la lettre", tendo flertado vez por outra com o surrealismo, ele pode ser visto também, classificações à parte, como um inimigo declarado da empatia entre leitor e obra.
Ler um livro seu, assim, dá a mesma sensação de quando se assiste a uma peça de Brecht: por mais que procure mergulhar na trama e esquecer de si próprio, o espectador é levado a se dar conta permanentemente de que não pertence àquele mundo fantasiado no palco e de que, ao contrário, está mesmo sentado numa poltrona para assisti-lo. É o oposto da velha purgação aristotélica.
Mas, dentro desse universo, Moravia é também um autor assumidamente repetitivo. Ao comentar sua vasta obra, numa entrevista dada seis meses antes de morrer, ele mesmo se considerou "muito monótono" e afirmou que tinha permanecido igual a quando estava com 20 anos de idade.
Isso vale tanto para seus temas, como já se disse acima –a exemplo do conto "A mulher girafa"–, quanto para seus personagens (mulheres quase sempre imponderáveis, selvagemente dúbias, homens inseguros e, principalmente quando jovens, sofrendo um bocado nas garras delas), ou ainda para o seu estilo, sempre seco, soturno e sem adereços (na descrição dos olhos de um garçom em outro belo conto, "A bandeja diante da porta", por exemplo, ele usa quase as mesmas palavras com que descreve os olhos da "leopardo" Nora). É o que talvez tenha levado o crítico Otto Maria Carpeaux a considerá-lo "um grande escritor estático".
Neste último livro, porém, salta aos olhos do leitor uma diferença com relação aos demais, infelizmente para pior: não há em "A Mulher Leopardo" frases de original plasticidade, descrições feitas por um observador ímpar ou comparações surpreendentes; tampouco a sobriedade e a ironia fina costumeiras de Moravia. Trata-se de um trabalho claramente inferior ao restante da sua obra nesses aspectos –e já se aventou a hipótese de que o autor teria mexido bastante no texto, para editá-lo, caso tivesse tido tempo para isso. De fato, fica um cheiro de esboço no ar.
Entre uma e outra informação histórico-turística sobre o Gabão, resta nesta novela, porém, uma interessante crueza nos diálogos, um frio jogo psicológico entre os quatro personagens e algumas armadilhas bem boladas no enredo. E é com esses elementos que Moravia, apesar de tudo, consegue reter a atenção do leitor, embora seja difícil, para este, sair com a certeza de ter lido um ótimo livro.
A título de curiosidade: a certa altura, já com água até o joelho dentro de um rio, em plena selva africana, o empresário Colli usa o seguinte argumento para encorajar seus companheiros a descerem de um bote e fazerem o mesmo que ele: "Nada de medo, não estamos no Brasil, aqui não há piranhas." O grande Moravia bem que poderia ter-nos poupado dessa!

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