São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Hermógenes e Reinaldo, mortos com 15 tiros

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O tempo e o acaso criaram o racismo científico no século 19. Desde então, milhões de seres humanos passaram a descrever-se como "negros" e "brancos", e os brancos a humilharem os negros, por acreditarem que são humanamente superiores a eles!
Poucos parecem ver que negros são tão "negros" e brancos são tão "brancos" quanto peles-vermelhas são "vermelhos" ou amarelos são "amarelos". A cegueira do preconceito é autocomplacente e consentida.
O tempo e o acaso tornaram o Brasil uma das mais violentas sociedades capitalistas modernas. Aqui, crianças morrem de fome ou, a golpes de miséria e abandono, convertem-se em pequenos assaltantes ou marginais ferozes. Na maioria são negras e, depois de cuspidas nas ruas e favelas imundas, são aniquiladas como ratos, por bandos de extermínio.
O tempo e acaso fizeram com que Hermógenes de Almeida Silva Filho e Reinaldo Guedes de Miranda nascessem "negros" no Brasil, lutassem pelo direito das minorias, participassem da Comissão que investiga o assassinato de adolescentes na Candelária e fossem trucidados com 15 tiros de pistola 9 mm, na madrugada de domingo, 12/06/94.
Por fim, o tempo e o acaso fizeram com que este horror acontecesse em tempos de Copa do Mundo, onde quase todos - é natural - só têm olhos e ouvidos para futebol. É a "história feita destino pessoal", diria Hannah Arendt.
Mas, continuo com Arendt, se não formos "desses rematados oportunistas que sempre aceitam o "aqui e agora", a história não pára neste funesto episódio. Que cultura é esta; que paí é este? Uma escola de bufões? Estes homens morreram por aquilo que diz respeito a todos! Por que o silêncio em torno de suas vidas e memórias? Por que noticiar as mortes em fundos de jornais, como anônimos fatos policiais? Onde está nossa televisão, sempre prestes a cair em "orgias patrióticas" por qualquer "vitória brasileira" nos esportes! Onde estão as matérias barulhentas e chorosas dos horários nobres, feitas quando a tragédia atinge, infelizmente, os ricos e famosos? Morte de "negros", lutando por justiça, não vende automóveis de luxo ou produtos de limpeza? É isto? Então, o que queremos com isto? Apontá-los como tolos que morreram por nada e por nenhuma causa? Ou queremos mostrar aos nossos filhos que o desprezo e o esquecimento são o destino dos que encarnam nossos ideais morais, enquanto o reconhecimento é privilégio dos que têm sucesso publicitário e dinheiro? Como podemos lamentar o descrédito na "política", na "ética" e na "lei", se ocultamos do olhar de todos aquilo que é a mais alta expressão da dignidade e heroísmo políticos: morrer pelo bem comum! Um povo sem heróis é um povo infeliz; um povo que não sabe reconhecer seus heróis é infeliz e estúpido!
Não penso na canalha cínica que sequestrou esta nação. Ou seja, à corja de traficantes, corruptos e vendidos de toda sorte ou naqueles empresários brasileiros que posam de vítimas do Estado enquanto "exigem", com a maior desfaçatez, que a sociedade pague os lucros inflacionários que perderam e querem manter, com ou sem inflação! Esta ralé é incorrigível. A solução é a cadeia. Penso nos que ainda querem fazer deste lugar um lugar digno de se viver. Por que comportar-se como ovelhas diante de chacais? Há pouco a Itália, sacudida pelos escândalos da Máfia e da democracia cristã, saía às ruas, em Palermo e outras cidades, gritando: "A Itália é nossa e não da Cosa Nostra!" Onde estão o parlamento, a universidade, os intelectuais, os partidos políticos, as associações, os grupos de cidadãos, os "cara-pintadas", que não vêem que mortes como estas são algo muito mais sério do que troca de moedas ou de caras em Brasília? Quem pode governar um país onde Hermógenes e Reinaldo são assassinados por quem foram e como foram, em pleno Rio de Janeiro, e dias depois, a polícia vem a público dizer que se tratou de um crime passional!
É tudo; e como é pouco! Estamos aprendendo a viver em guetos, cantando como rãs em charcos. O cerco da marginalidade se estreita. E ao chegar a nossa vez, vamos idiotamente perguntar o que outros algum dia perguntaram, quando resposta alguma fazia mais sentido: como Hitler ou o Cartel de Medellín tornaram-se possíveis? Nesta hora, talvez Hermógenes e Reinaldo venham a ser lembrados. Só que não haverá "Dia D", onde não existe desejo de libertação. Não estaremos em luta contra nazistas, stalinistas ou qualquer outro totalitarismo que se venha, por acaso, a inventar. A "Normandia ocupada" está em cada um. Está no conforto bovino que nos prende à indecência da especulação, do consumo, do desperdício, enquanto homens como nós morrem por nossa honra e por nossa vida. Se o "basta!" não chegar a tempo, logo logo virá o "tarde demais".

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