São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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OS DOIS LADOS DA MOEDA

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

O real, que desde sexta-feira rege o cotidiano dos brasileiros, é o primeiro passo para estabilizar a economia e viabilizar a retomada do desenvolvimento do país, integrando a massa de miseráveis e desempregados que hoje vivem à margem do mercado e da cidadania? Ou, pelo contrário, a nova moeda é o ovo da serpente, o embrião de um processo de radicalização do apartheid social que divide o país em dois mundos?
A resposta a essa questão, que o Mais! discute nessa edição, talvez seja o grande e definitivo divisor de águas da eleição deste ano.
Une os três últimos a avaliação comum de que a nova moeda representa, mais do que a materialização de um plano eleitoreiro, algo muito mais profundo –o início da submissão do Brasil ao chamado Consenso de Washington.
Estranhamente pouco difundida no Brasil, "Washington Consensus", como se diz em inglês, é uma expressão que resume a receita preconizada pelo FMI e pelo Bird (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para estabilizar e ajustar as economias dos países periféricos, entre eles o Brasil, de modo a adaptá-los à nova realidade do capitalismo mundial.
A expressão foi forjada em 1990, pelo economista inglês radicado nos EUA John Williamson, durante um seminário em Washington promovido pelo governo norte-americano.
1) Estabilização da economia (combate à inflação); 2) Realização das reformas estruturais (privatizações, desregulamentação de mercados, liberalização financeira e comercial); e 3) Retomada dos investimentos estrangeiros para alavancar o desenvolvimento.
Não há entre os idéologos de Lula, Quércia ou Brizola um que não veja na figura de Fernando Henrique a encarnação do Consenso de Washington entre nós.
Pior que isso. Para PT, PMDB e PDT, o resultado lógico desse caminho –ou o "custo social", para usar o eufemismo corrente dos economistas– é o aprofundamento do apartheid social no país.
Mais recessão, aumento do desemprego e marginalização crescente das camadas mais pobres da população, que passariam à história como carvão, vítimas daquilo que o economista João Manuel Cardoso de Mello (coordenador do programa de Quércia) chama de lógica destrutiva do capital.
"Grande sacanagem"
Diante de tais críticas, a resposta pelo lado do PSDB não aplaca em nada o tom ácido que o debate sobre a sucessão adquiriu no meio intelectual. "Trata-se de uma grande sacanagem", diz o economista Luiz Carlos Bresser Pereira, coordenador financeiro da campanha de Fernando Henrique, "confundir o projeto do PSDB para o país com as teses chanceladas pelo Consenso de Washington".
Segundo Bresser, PT, PMDB e PDT representam matizes diferenciadas de um mesmo "populismo arcaico". Todos os três estariam amarrados a uma concepção de Estado nacional-desenvolvimentista que está historicamente esgotada.
O PSDB, pelo contrário, sempre nas palavras de Bresser, parte da avaliação de que o Estado brasileiro está falido em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, está quebrado. É incapaz de sustentar a moeda nacional e financiar as políticas públicas.
Em segundo lugar, está falido porque sua intervenção na economia a partir de 1930 se deu no sentido de alavancar um modelo de desenvolvimento baseado na chamada substituição de importações, o que, talvez, desde os anos 60, mas certamente desde a década de 80, está totalmente superado.
O programa do PSDB visaria, segundo Bresser, devolver ao Estado sua capacidade de coordenar as políticas sociais e não simplesmente deixar a economia à mercê da marcha louca do mercado.
Este seria o sentido social-democrata da candidatura FHC, uma resposta contemporânea ao neoliberalismo que Washington procurou vender como a única saída possível para a América Latina ao longo da década de 80.
Moedeiros falsos
O melhor contraponto à auto-imagem que o PSDB faz de seu papel no atual xadrez político nacional talvez seja o artigo "Os moedeiros falsos", do cientista político José Luís Fiori, que o Mais! publica hoje nas páginas 6-6 e 6-7.
Ao contrário do que diz Bresser, escreve Fiori que FHC, ao viablizar sua candidatura com uma coalizão à direita, estaria tentando reconduzir a burguesia nacional a seu destino histórico, de sócia-menor e dependente do capitalismo mundial, tal como o sociólogo Fernando Henrique mostrou nos anos 60, quando fez um estudo sobre o empresariado brasileiro.
Assim, conclui Fiori, "FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o Estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária". A candidatura tucana estaria, de novo, refundando a economia para deixar de refundar, mais uma vez, o Estado brasileiro.
O oposto, nesse sentido, do que representaria a candidatura Lula, que, se por um lado aponta para uma ruptura histórica –prometendo virar de cabeça para baixo a atual correlação de poder–, por outro talvez seja incapaz de criar uma alternativa econômica que fuja ao Consenso de Washington.
Esperanto da economia
Adotada em mais de 60 países no mundo inteiro, a bula de Washington se transformou no verdadeiro esperanto da economia contemporânea. Fugir dela, tentar escapar a esse destino –no sentido trágico do termo– talvez signifique cair na rota da "africanização", da exclusão definitiva do país do quadro do capitalismo.
Este é o ponto que transcende as candidaturas FHC e Lula e as reduz a tentativas igualmente ilusórias de vencer a barreira do apartheid (do país no caso de FHC e dos miseráveis no caso de Lula).
Se a dinamização do capitalismo contemporâneo se mostra ligada à criação do desemprego, como acredita o crítico literário Roberto Schwarz; e se o conceito de "desemprego estrutural" é algo que veio para ficar e já faz parte do vocabulário cotidiano dos países avançados, como sustenta o historiador Luiz Felipe de Alencastro –então, se tudo isso for verdade, o enorme dispêndio de energia de cada um que se põe a discutir as opções entre Lula e FHC talvez não passe de um esforço vão, uma atitude de avestruz, uma ilusão necessária para driblar o desconforto causado pela idéia de que estamos apenas no início de um processo inexorável que alguém já batizou de "colapso da modernização".

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